Nos últimos anos, diante da urgência por assistência médica causada pelo surgimento da covid-19, muito se ouviu falar no Sistema Único de Saúde (SUS). Diante de um inimigo invisível a olho nu, este sistema nunca foi tão necessário em sua tarefa de salvar vidas.
Neste ano de 2023, o SUS completa 33 anos de existência e é considerado um dos maiores sistemas de saúde do mundo, pois é o único a garantir acesso integral, universal e gratuito à saúde para mais de 190 milhões de pessoas.
Histórico
Antes do SUS existir, a saúde no Brasil era organizada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (Inamp), criado no início da década de 1970, durante o governo militar. O instituto foi o responsável por gerir o sistema nacional de saúde e a Central de Medicamentos (Ceme), até a década de 1980, criando unidades regionais em todo o país para administrar seus programas.
No entanto, embora se estime que cerca de 75% da população tenha sido contemplada com assistência médica e hospitalar até a década de 1980, o instituto só atendia aos trabalhadores formais que contribuíam com a previdência social. As pessoas que não tinham empregos formais ou estavam desempregadas - não tinham acesso à saúde ou eram obrigadas a recorrer aos serviços privados.
Tudo isso mudou com a promulgação da Constituição de 1988, quando se notou um intenso debate em torno da universalização da saúde na sociedade. E foi nesse contexto que o SUS foi criado, por meio da Lei 8.080/1990 após pressão popular, a fim de fazer valer o que diz a constituição, que assegura que a saúde é um direito de todos, como afirma seu artigo 196.
Foto: Erik Barros Pinto. Manifestação por uma nova constituição.
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Assim, o SUS nasce do processo de redemocratização do país, acompanhado de reformas estruturais que colocaram o Estado como provedor do bem estar social de todos os brasileiros. Seus princípios são: universalidade, pela garantia de atendimento a todos sem discriminação; equidade, pois atua na diminuição das desigualdades por entender que pessoas têm dificuldades diferentes; integralidade, por oferecer serviços que deem conta de uma assistência total ao cidadão; e participação social na criação de políticas públicas de saúde.
O Sistema de Saúde hoje
Não é exagero falar que o SUS é o maior sistema de saúde do mundo. Ele abrange desde um simples exame de sangue a serviços mais complexos, como transplantes de órgãos, e tudo de forma gratuita. O Brasil é o único país do mundo com mais de 200 milhões de habitantes com um sistema de saúde como o SUS.
O sistema é composto pelo Ministério da Saúde, responsável pela gestão a nível nacional. É ele quem formula, normatiza, monitora e avalia as políticas e ações em articulação com os estados e municípios, no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), para executar o Plano Nacional de Saúde e com o Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Fazem parte da estrutura do Ministério da Saúde, como entidades vinculadas e/ou subordinadas, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), o Instituto Nacional de Câncer (Inca), o Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into) e mais 8 hospitais federais.
“Para ajudar no desenvolvimento do SUS, foi criado o Conselho Nacional de Saúde (CNS), com a finalidade de atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde, pois sua composição traz representações de usuários, trabalhadores, prestadores de serviços do Estado”, explica Dulcilene Tiné, conselheira titular do CNS pelo segmento gestor/prestador, como representante da Federação Brasileira de Hospitais (FBH).
A nível estadual estão as Secretarias Estaduais de Saúde (SES), que participam na formulação das políticas e ações de saúde, prestam apoio aos municípios em articulação com o Conselho Estadual e participa da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) para aprovar e implementar o plano estadual de saúde.
Por fim, estão as Secretarias Municipais de Saúde (SMS), responsáveis pela organização, controle, avaliação e execução das ações e serviços de saúde em articulação com o conselho municipal e a esfera estadual para aprovar e implantar o plano municipal de saúde.
No geral, é comum que as pessoas entendam que o SUS se restringe apenas à assistência médica e hospitalar. Mas, ele também está presente em muitas outras coisas do dia-a-dia. Como a água que tomamos, o sistema de esgoto das ruas, a fiscalização da procedência dos alimentos no supermercado, tudo isso é SUS.
Avanços e desafios
É comum ouvir pessoas dizendo que o SUS não funciona ou é insuficiente. E de fato, o sistema ainda esbarra em muitos problemas. O principal deles é a ausência de um investimento adequado. Os investimentos que são despendidos para a saúde não dão conta de suprir de maneira eficiente todas as demandas da população. Mas isso não significa que não funcione, pois mesmo assim o sistema ainda consegue fazer muito com pouco.
Neste sentido, o sistema é frequentemente atacado e o apelo pela privatização é acionado como resolução dos problemas. Mas quais os perigos que esse discurso privatista oferece?
Para Dulcilene, o SUS hoje atua de forma conjunta com a iniciativa privada, especialmente para realizar procedimentos de média e alta complexidade. Mas substituir o sistema público pelo privado não é a melhor saída para oferecer atendimentos eficientes a toda a população, se nem todos podem pagar pelos serviços.
“Essa complementaridade é que permite um maior alcance aos atendimentos. Como exemplo disso, podemos citar as entidades privadas filantrópicas, que estão espalhadas por todo país e que cobrem mais de 60% dos atendimentos SUS. Poder contar com o atendimento SUS em todos os aspectos e deixar o atendimento privado a quem estiver disposto a pagar por ele, seria o melhor dos mundos. Mas essa não é a nossa realidade hoje, então é preciso encontrar alternativas para não deixar a população desassistida”.
Mesmo diante de tantos impasses, ela explica que o SUS está evoluindo e possui programas que são exemplos para o mundo, como o Programa Nacional de Imunização (PNI), o Programa Saúde da Família (PSF), o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e tantos outros.
Mas, para a conselheira Dulcilene, outro obstáculo é de ordem gerencial, pois não há uma continuação dos projetos na troca de gestores. Para ela, é preciso que os governantes ouçam mais os conselheiros de saúde, que podem ajudar a refletir nas carências do sistema.
“O principal problema hoje é a falta de financiamento e desmonte das políticas públicas que precisam ser reestruturadas e mais adequadas às necessidades da população. Nós também não temos uma continuidade de gestão, uma uniformidade de projetos. Não há uma continuidade de propósitos, mas alguns programas conseguem sobreviver como, por exemplo, o Programa de Agentes Comunitários de Saúde. É necessário ouvir mais os conselhos (nacional, estadual e municipal) que são capazes de refletir a necessidade do sistema e podem ajudar”, explica.
Outro desafio diz respeito às diferenças regionais. Mesmo com a expansão do sistema, a tarefa de levar saúde de qualidade para um país de proporções continentais como o Brasil e com poucos investimentos, se torna uma tarefa quase impossível. Para Dulcilene, as regiões com a maior dificuldade de cobertura são Norte e Nordeste, devido aos deslocamentos geográficos que são de difícil acesso.
Foto: reprodução da internet. Enfermeira, Rebeka Fonseca, empurrando maca com paciente em estrada interditada no Pará.
“Eu acredito que temos que começar a olhar realmente o país de forma mais regionalizada, e dar mais ouvido e voz para a população, principalmente através de seus Conselhos de Saúde, porque são eles que têm a capacidade de identificar quais as maiores necessidades de saúde de sua população e como seriam mais bem investidos os recursos disponíveis”, explica.
Contra um inimigo comum: a proteção também passa pela defesa do SUS
Desde de 2020, o SUS enfrenta o maior desafio de sua história: a pandemia do novo coronavírus. E mesmo diante de tantos impasses para conter um inimigo desconhecido e potencialmente destruidor, o SUS novamente mostrou sua força.
“Durante o enfrentamento da Covid-19, a existência de um sistema de saúde público, gratuito e universal, foi o suporte que a população precisava. A resposta à Covid-19 foi exemplar na forma como o sistema se organizou para suprir o atendimento com abertura de novos leitos, aumento do número de profissionais da saúde e aprimoramento do sistema de vigilância. A relevância do sistema de saúde, extremamente exigido neste período de pandemia, mostrou-se ainda maior quando os casos e, principalmente, as mortes pela Covid-19 começaram a diminuir", destaca Dulcilene.
A Covid-19 mostrou a necessidade do sistema para o Brasil. Diante da maior catástrofe sanitária dos últimos tempos, emergiu a importância da manutenção e defesa de um sistema universal e gratuito como sendo dever de todos os brasileiros. O SUS alcançou a marca de 11 pontos no Índice de Confiança Social (ICS), entre julho de 2019 e 2020, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Ibope Inteligência, sendo o patamar mais alto de confiança no sistema público já registrado.
“A participação social é fundamental para melhorar esse sistema, principalmente através dos seus conselhos de saúde. É por meio deles que a sociedade participa da construção das políticas e indica o melhor caminho para o atendimento à sua população. Além de cobrar dos gestores o melhor desenvolvimento de estratégias para as ações de expansão e melhoria dos serviços”, explica Dulcilene, que afirma que a manutenção do sistema também é papel da população. Ela lembra que o sistema é referência no mundo inteiro e por isso merece ser valorizado.
O futuro é o SUS
O Tapajós de Fato entrevistou ainda Eric Montes, que nos relatou suas experiências como usuário do SUS. Em 2020, Eric foi diagnosticado com Seminoma Metastático. Ele nos conta que realiza todo seu tratamento pelo sistema, com exceção da primeira cirurgia que foi feita pelo setor privado, pois a partir do momento que o sistema não tem condições de atender a todos que buscam por ele, é impossível não contar com o sistema privado de forma complementar.
“Eu faço todo o meu tratamento pelo SUS, desde os exames até as infusões de quimioterápicos. A primeira fase (quimioterapia) teve duração de 67 dias, divididos em 4 ciclos, e [eu] continuo esperando por consultas para dar continuidade”.
Foto: reprodução da internet. Eric Montes em sua última quimioterapia.
Eric é um dos muitos brasileiros que tiveram dificuldades de lidar com o diagnóstico de uma doença grave, mas que pode contar com o acolhimento dos profissionais de saúde do Hospital Regional do Baixo Amazonas.
“Eu só tenho a agradecer ao SUS e aos profissionais do Hospital Regional por conta do tratamento que é referência em cuidados oncológicos. A equipe é maravilhosa e com o tratamento mais humanizado”, finaliza Eric.
Essas e muitas outras histórias indicam para a certeza de que o SUS é patrimônio de todos os brasileiros e precisa ser valorizado cotidianamente. Devemos encarar a defesa do SUS não apenas como estratégia de governos, mas como política pública permanente.