“Poderia até dizer que foi a maior auditoria e fiscalização de uma ONG na história, com a apreensão e investigação de notas fiscais, contratos, livros, hard disks e notebooks contábeis, enfim, todo o nosso depósito de arquivos administrativos dos últimos 10 anos. Se havia alguma motivação em criminalizar organizações da sociedade civil, o que se deu foi o contrário, com essas acusações infundadas resultando num certificado de excelência nas nossas contas. É mais uma comprovação de que ONGs são sim sérias” - comentou o coordenador geral do Projeto Saúde e Alegria, Caetano Scannavino, após notificação do despacho.
O Inquérito Civil SIMP 008043-031/2020 averiguava falsidade documental nas contas do PSA. As autoridades policiais e judiciais tiveram acesso a dez anos de documentação administrativa e prestações de contas, com a perícia constatando a inexistência de irregularidades, e aprovando cada um dos oito mil documentos apreendidos. “Era um resultado que a gente já esperava, pois é fruto de um trabalho sério que o Projeto Saúde e Alegria desenvolve há anos na região, com muito respeito às comunidades e apoiadores. Poderíamos até ter questionado na Justiça a apreensão desses documentos, mas optamos pelo espelhamento, pra que fizessem cópia de tudo e prosseguissem nas investigações. Fizemos questão que nos investigassem, e os resultados estão aí” - explica o fundador do PSA, Eugênio Scannavino. Há 36 anos o médico iniciou os trabalhos de promoção social, saúde, educação, renda, meio ambiente, somando esforços com o estado brasileiro no apoio aos programas de bem-viver para o desenvolvimento da região.
Foram praticamente três anos de suspeitas, ilações injustas e incabíveis para a boa imagem e credibilidade da Organização, desde o fatídico dia de 26 de novembro de 2019, quando o escritório do Projeto Saúde e Alegria em Santarém foi alvo de busca e apreensão de documentos e computadores pela Polícia Civil do Estado na operação Fogo do Sairé.
Nesse mesmo dia, quatro brigadistas voluntários do Instituto Aquífero Alter do Chão foram presos, acusados sem provas, de terem provocado meses antes os incêndios na região em conluio com ONGs para fins de captação de recursos, envolvendo também a WWF, em uma narrativa surreal que citava até o ator Leonardo DiCaprio como apoiador.
Um dos brigadistas presos era funcionário da área logística do PSA. “A Polícia Civil chegou no nosso escritório de uma forma truculenta, armada com metralhadora, sem a gente saber por que, sem saber qual a acusação e, inclusive, sem decisão judicial clara, com um mandado de apreensão genérico, sem definir o quê, pra quê, sem as especificidades conforme o bom direito rege. Até entenderíamos se quisessem levar o computador e documentos do funcionário que foi preso, mas levaram tudo! Me pergunto o que uma prestação de contas de 2011 tem a ver com um incêndio em setembro de 2019?”, indagou Adriana Pontes, advogada, coordenadora administrativa/financeira do PSA.
O documento relata que “no dia 15 de setembro de 2019, um incêndio de grandes proporções atingiu a área florestal em Alter do Chão. A Polícia Civil instaurou um inquérito para investigar as causas do incêndio. O inquérito como resultado indireto apontou a hipótese de existência de possíveis irregularidades contábeis” e que durante a operação, “uma série de documentos foram coletados e encaminhados à 12ª Promotoria de Justiça de Santarém por envolver notas fiscais de entidades do terceiro setor”.
A partir daí, foi instaurado um procedimento onde os documentos foram enviados para o Núcleo do Terceiro Setor em Belém, onde passaram por minuciosa análise. Em 12 de maio de 2022, o núcleo expediu uma nota técnica “concluindo a não identificação de qualquer indício de fraude documental na escrituração contábil do PSA”, tendo como foco maior as análises no período de 2017 a 2019, encerrando assim o inquérito por não terem sido encontradas irregularidades.
Recentemente, o Conselho Superior do Ministério Público homologou por unanimidade o arquivamento. Os autos foram encaminhados ao Conselho Superior do Ministério Público para fins de homologação de arquivamento em 27 de fevereiro de 2023. “As notas fiscais tanto de aquisição de mercadorias quanto as de prestação de serviços foram devidamente evidenciadas contabilmente, em atenção ao disposto no artigo n 1.179 da Lei 10.406/20022, combinado com as diretrizes técnicas contábeis previstas na Resolução CFC nº 686/903”, ressalta a decisão.
Adriana Pontes comentou que o arquivamento é fruto de um trabalho executado na ponta do lápis, de boas práticas e transparência. “A ironia é que poucos dias antes da apreensão policial, o PSA foi agraciado com o Prêmio ‘100 Melhores ONGs do Brasil’ com base em indicadores de gestão e administração financeira”. Todos os relatórios financeiros, as prestações de contas e os balanços patrimoniais são atualizados e auditados por um serviço independente para serem submetidos à análise do Conselho Fiscal do PSA e à aprovação pela assembleia geral de sócios, além da auditoria de cada um dos doadores.
Anualmente auditadas, as contas do PSA passam minuciosamente por avaliações. Especializado em Terceiro Setor, o auditor independente responsável, Eliano de Lima, confirma as boas práticas de gestão, “mesmo com o alto nível de exigência dos financiadores dos projetos com as prestações, a instituição vem entregando todas no padrão. Elas são completas e corretas de conformidade com a documentação lançada na contabilidade. Na administração de seus convênios, não há indícios e/ou desperdícios de mau uso dos fundos aplicados nos projetos”.
Para Fábio Pena, um dos coordenadores da ONG, o pronunciamento do MPPA é resultado de uma séria, transparente e exigente administração fiscal da entidade que há mais de trinta anos desenvolve atividades na região amazônica, com compromisso e respeito às populações ribeirinhas. Somos reconhecidos por entregar benefícios diretos às comunidades por meio de nossos projetos, e para isso a correção na aplicação dos recursos é o primeiro passo.
Com o arquivamento do processo cível, encerra-se um triste episódio de nossa história, já que no âmbito criminal as acusações contra os brigadistas não se sustentaram, com as investigações paralelas da Polícia Federal desmentindo a Polícia Civil ao não apontar relação alguma de brigadistas e ONGs com o início dos incêndios. A Justiça Estadual perdeu para Federal inclusive a competência para julgar o caso, também em vias de arquivamento final.
Projetos cancelados em meio à investigação
A circulação de fake news impactou as atividades do PSA e, respectivamente, o público atendido pela ONG. “Foram momentos muito difíceis, uma campanha difamatória, uso indevido de nossas fotos nas redes sociais, incitação ao ódio, mas a rede de apoio e solidariedade foi muito maior. Se até nos surpreendeu, imagino que surpreendeu ainda mais os que armaram isso contra a gente. Nem por isso deixamos de ser prejudicados, injustamente, até porque quando se é acusado, vira assunto de primeira página dos jornais e quando se é inocentado, sai apenas uma notinha”, disse Caetano Scannavino.
No início de 2022, às vésperas de assinar um contrato de financiamento para um projeto para saúde da mulher junto a uma farmacêutica japonesa, os rumores de fraudes nas contas inviabilizaram a parceria, explicou a empresária e fundadora da Bem-Feito Soluções em Gestão, Ana Carolina Moretti: “Por conta das notícias vexaminosas veiculadas na mídia e com a abertura do inquérito contra o Saúde e Alegria, infelizmente fomos impedidos de prosperar com esta parceria”. Ao final de um processo de Due Diligencie, muito utilizado por grandes empresas para averiguar o modo de operação de fornecedores que estão para ser contratados, a ONG não recebeu o aval para realizar a implantação do projeto em saúde por parte da empresa patrocinadora do projeto, que por sua vez, segue rigorosas políticas de compliance nacionais e internacionais.
Para a empresária especializada em desenvolvimento e gestão de projetos, o PSA foi prejudicado e apesar do compromisso incansável da instituição na Amazônia e lisura atestada com a absolvição, os danos são irreparáveis. “É irreversível e lamentamos por demais que tal injustiça tenha causado tantos danos a todos os lados desta história”.
A propagação do discurso de desconfiança e necessidade de controle e punição excessivos contra as organizações da sociedade civil e o ativismo ambiental, fortaleceu a criminalização dessas instituições.
O prejuízo, além de ser diretamente operado no combate de incêndio na flora, também pode ser observado na reputação da organização, que tem que investir recursos para fazer não só um trabalho de defesa jurídica, mas também de reversão da imagem negativa que lhe é atribuída num episódio como este.
“Mesmo nos momentos mais difíceis, jamais respondemos à incitação do ódio com mais ódio. Sempre respondemos com trabalho. A gente entende de saúde e de alegria. Não de ódio. Não podemos nem vamos cair nessa armadilha e fazer o jogo deles”, finalizou Caetano Scannavino.
Histórico de credibilidade e comprometimento com a Amazônia
O caso ganhou grande repercussão nacional e internacional e muitos apoiadores em defesa da instituição. À época, organizações locais se mobilizaram e promoveram um manifesto de apoio de mais de duzentas organizações nacionais.
A advogada Laís de Figueirêdo, do escritório de advocacia que atuou na esfera cível do processo, lembra que as investigações foram feitas, a análise dos documentos foi realizada e que não foram identificados elementos que justifiquem qualquer continuidade das investigações, ou a propositura de uma ação na Justiça. Significa dizer que a investigação concluiu pela ausência de quaisquer irregularidades civis e/ou tributárias nas contas do Projeto Saúde e Alegria.
Por ser uma organização comprometida com a Amazônia e com boas práticas de gestão, a ampla investigação constatou a inexistência de qualquer irregularidade na administração dos recursos recebidos pelo Saúde e Alegria.
“Ficamos indignados com a tentativa de criminalizar a organização, levantando suspeitas descabidas sobre a gestão dos recursos financeiros, mas ao final, parece que o tiro saiu pela culatra pois todo esse processo acabou representando um verdadeiro atestado de idoneidade, na medida em que as contas e atividades da organização dos últimos anos foram escarafunchadas pelos órgãos de controle e nada de errado foi encontrado”, pontua Figueirêdo.
Para a advogada, o trâmite da investigação foi anormal, “absolutamente atípico, por todo o contexto de fake news e perseguição aos defensores da floresta envolvidos no caso”. Dentre as mentiras divulgadas, o comentário de que o ator Leonardo DiCaprio estaria financiando ONGs ambientalistas de fachada para promover queimadas na Amazônia, e que os responsáveis pelo incêndio criminosos na área de Alter do Chão seriam os próprios brigadistas que atuam na região.
A criminalização dos ativistas e das ONGs, neste caso paradigmático, ocorreu em duas dimensões: na seara penal por intermédio da prisão de brigadistas voluntários, e na adoção de medidas cautelares de busca e apreensão em sede de organização da sociedade civil, sem qualquer respaldo jurídico. Após as investigações, mostraram-se equivocadas e abusivas.
O inquérito policial que tramitou na Vara Criminal de Santarém, estava investigando os brigadistas que foram presos. A conexão estabelecida com o Projeto Saúde e Alegria foi pelo fato de que um dos brigadistas havia sido funcionário na organização. Não houve nenhum fato ou denúncia específica que envolvesse o PSA, ou algum membro de sua administração, seja conselheiro, dirigente ou funcionário. À época, houve operação policial que ingressou na sede da organização e realizou busca e apreensão indiscriminada de computadores, documentos e notas fiscais da organização, sob a alegação de que eram necessários para investigar aspectos relacionados com os incêndios florestais.