Ingressar em uma universidade é o sonho de diversos jovens, mas a realidade que muitos enfrentam ao ingressar na universidade acaba, muitas vezes, desmotivando e atrapalhando a permanência no ambiente acadêmico, principalmente para as pessoas que estão dentro dos territórios.
Além da dificuldade de acesso à informação e até mesmo de ensino, visto que muitas comunidades estão na categoria do Ensino Modular (Sistema Modular de Educação - SOME) - este tipo de ensino em módulos que disponibiliza cerca de 2 a 3 professores de uma disciplina durante um período, possui muitas falhas principalmente quando não há fiscalização - isso atrasa ainda mais o desenvolvimento do aluno.
Outra questão também é a logística, o município de Santarém é um grande polo de ensino, com diversas universidades públicas e particulares tornando a cidade atrativa também para alunos de outros municípios da região. Essa vivência faz parte do dia-a-dia de Marielle, acadêmica do curso de Farmácia na Universidade Federal do Oeste (UFOPA).
Marielle é quilombola, do território de Pea-fú, município de Monte Alegre, ela ingressou na UFOPA através do Processo Seletivo Especial Quilombola (PSEQ) e teve que além de sair de seu quilombo, precisou mudar de cidade.
“A primeira dificuldade que tive após saber que fui aprovada foi o local onde eu iria morar, essa foi uma das primeiras, depois que consegui o local (casa dos meus tios), vieram outros desafios, o principal questionamento era, como eu iria me sustentar? Pois como o meu curso é integral não teria como eu conseguir um trabalho, e nesse momento o auxílio da Ufopa ajudou, mas não é o suficiente”, nos conta Marielle.
Ela ainda acrescenta que recebe o auxílio de seus pais e familiares, que a ajudam financeiramente, e com a alimentação que provém de seu território. “[Esses auxílios] são fundamentais para que eu consiga me manter aqui”.
Além disso, também tem o fator distância e adaptação, “ficar longe da família e do meu território é muito difícil, e me afeta psicologicamente, o que acaba influenciando no meu rendimento acadêmico”, explica Marielle. Todas estas questões estão diretamente ligadas ao desempenho dos estudantes na universidade.
Esta problemática de adaptação abrange também alunos que são de territórios do município de Santarém. Novamente para se manter na universidade esses alunos precisam sair de seus territórios e enfrentar uma realidade totalmente diferente da que estão acostumados.
Ádria Fernandes do povo Tupinambá passou por todos esses processos até a sua formação. Ela ingressou na UFOPA, em 2013, através do Processo Seletivo Especial Indígena (PSEI). Em conversa com o Tapajós de Fato ela contou como foi esse início na universidade.
“No ano que eu entrei a gente não ia direto pro curso, na verdade não tinha o curso definido, então a gente no primeiro semestre tinha que ter um bom rendimento na formação interdisciplinar pra tentar conseguir a vaga no curso pretendido, ali era meio que um processo seletivo interno onde a gente concorreu com o pessoal do Processo Seletivo Regular (PSR)”.
Ádria comenta que essa experiência foi o seu primeiro “choque”, a forma de ingresso e a permanência a fez perceber que a universidade não estava preparada para receber alunos indígenas, “me sentia totalmente perdida, desde o processo de habilitação porque a gente vem do território onde é uma realidade totalmente diferente do contexto urbano em si”.
“O processo de habilitação na universidade também se transformou em um obstáculo para os alunos, [...] eu achei um processo meio burocrático onde a linguagem documentar lá pra mim era difícil de assimilar”, comenta Ádria. Felizmente ela teve ajuda de seus colegas que também estavam fazendo a habilitação.
Vencidos esses processos, Ádria se viu em seu primeiro semestre da faculdade, mas a realidade que ela enfrentava acabava a desestimulando.
“Eu me sentia muito inferior em relação aos outros alunos que estavam ali e eu acho que foi o momento em que eu busquei fortalecer a relação com os outros alunos indígenas que eu sentia que a gente estava na mesma aflição”.
Essa aproximação contribui para que ela conseguisse continuar no curso, “estabelecer essas relações, fortalecer esses laços com os nossos parentes foi muito importante pra eu conseguir sobreviver no primeiro semestre”.
Ádria conseguiu ingressar no curso de Engenharia Florestal, mas quase desistiu por não se sentir acolhida naquele espaço. “Eu demorei a me sentir parte daquele curso do qual eu teria que passar os meus próximos quatro anos e meio, então eu pensei em desistir”, nos conta Ádria.
Esse foi apenas um dos motivos, porque segundo ela, diversos fatores adversos a fizeram questionar sua permanência na universidade, que iam muito além da questão financeira, “eu acho que nós temos que nos sentir parte do processo, parte da universidade, sentir que nós somos bem acolhidos somos bem-vindos e eu não sentia isso no meu curso e inclusive por professores me faziam duvidar da minha capacidade, meus próprios colegas e foi um momento bem complexo, eles falavam que era pra eu tentar um curso mais fácil porque engenharia era difícil, então na verdade o ambiente no qual eu estava inserido não me motivava a continuar”.
Essas falas fizeram com que Ádria tentasse mudar de curso, mas por causa dessa desmotivação ela acabou tendo baixo rendimento nas disciplinas e isso a impediu de fazer a mobilidade.
“Em certo momento eu fui convencida de que aquele curso não era pra mim porque a engenharia tem muito cálculo e rola esse preconceito escancarado de que nós [indígenas] não temos capacidade pra determinados cursos”relata Ádria.
Esse baixo rendimento, muito influenciado pelo preconceito velado de alunos e professores, durou os quatro primeiros semestres de seu curso, a partir do quinto foi quando a “chavinha virou”, com a entrada de novos professores no curso.
“Eles perceberam que a gente não estava conseguindo acompanhar a turma, porque nós éramos quatro alunos indígenas numa turma de quarenta, então eles passaram a dar uma atenção especial pra gente, foi quando começamos a ser inseridos nos projetos de extensão, eu passei a participar do programa de iniciação científica, consegui orientador, já participava mais dos laboratórios que era uma coisa que eu meio que criava aversão no início, eu odiava os laboratórios mas a partir de então eu senti eu comecei a me sentir parte da universidade”.
Ádria relata que faltava essa sensibilidade dos profissionais, dos professores e da própria coordenação do curso, este apoio faz muita diferença para os alunos que saem de seus territórios para a universidade, é necessário que a faculdade tenha essa percepção e crie meios de acolhimento e ajuda para os acadêmicos. Essa base fará com que o aluno se sinta parte da universidade e permaneça até a sua conclusão.