Criminalização e especulação imobiliária expulsa famílias que vivem há 34 anos próximo ao novo Centro de Convenções de Santarém

O terreno conhecido como Sítio Bacabal fica ao lado Centro de Convenções, na avenida Fernando Guilhon, pelo menos cinco casas já foram destruídas de maneira arbitrária, o medo e a incerteza de futuro preocupa os moradores atingidos.

04/07/2023 às 09h00 Atualizada em 04/07/2023 às 11h02
Por: Tapajós de Fato Fonte: Tapajós de Fato
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Famílias pobres, de extrativistas, pescadores e trabalhadores rurais, que em meio a constantes ameaças, perdem seus lares / Foto: Tapajós de Fato
Famílias pobres, de extrativistas, pescadores e trabalhadores rurais, que em meio a constantes ameaças, perdem seus lares / Foto: Tapajós de Fato

O notável crescimento da cidade de Santarém, terceira maior cidade do estado do Pará com mais de 330 mil habitantes, de acordo com dados recentemente divulgados pelo IBGE, não está acontecendo de forma planejada, ocasionando conflitos, ameaças e tentativas de despejo de famílias pobres residentes em áreas de especulação e crescimento urbano do município. O Sítio Bacabal é um exemplo e reflexo da grave violência que está intimamente ligada ao processo de expansão urbana nas cidades. 

 

O Sítio Bacabal fica na margem direita da avenida Fernando Guilhon, ao lado do Centro de Convenções Sebastião Tapajós, fazendo fundos com o lago do Juá. Ao todo 10 famílias vivem no local e estão sem ter para onde ir após sentença de despejo proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) dando reintegração de posse para Edilson Martins Muniz, que reclama ser dono da propriedade desde a década  de 90. A sentença de despejo estabelece o prazo de 15 dias para que as famílias saiam da terra em que vivem desde 09 de janeiro de 1987. A sentença é mais um agravante para essas famílias que vivem há anos sob pressão e medo. 

 

De acordo com a Campanha Despejo Zero, a reintegração de posse é a principal justificativa apresentada para despejar famílias de suas moradias. No Pará existem cerca de 6 mil famílias ameaçadas, segundo a articulação formada por organizações sociais que denunciam as violações de direitos humanos provocadas por despejos e remoções forçadas. 

 

A formação do sítio se deu quando seu Valdecir Ferreira e dona Luzanira Lima chegaram ao local com dois filhos pequenos. Seu Valdecir, um jovem de 17 anos, era jardineiro no Aeroporto Wilson Fonseca, que fica localizado próximo ao Sítio Bacabal. A família cresceu, o casal teve mais sete filhos que foram criados a partir da pesca e do extrativismo da palha de curuá, plantadas por Valdeci quando chegou ao local. 

 

Hoje, todos adultos, os filhos de Valdecir e Luzanira constituíram famílias e permanecem no local. Ao todo, o sítio possui 10  famílias, somando 37 pessoas destes, 19  são netos, todos crianças com idades entre 1 mês de vida e 12 anos.

 

Desde 2021, na ocasião da segunda destruição das casas, as famílias contam com o apoio do Sindicato de Trabalhadores Rurais Agricultoras e Agricultores Familiares de Santarém (STTR), que entendem a importância da presença das famílias naquela terra e lutam para garantir o direito à moradia dos trabalhadores. 

 

A organização Terra de Direitos - que atua em parceria com o STTR no caso - irá recorrer da decisão na justiça para frear a violação de direito das famílias e tentar garantir que continuem na posse da área.  “É possível ajuizar um recurso em face dessa decisão que traz uma série de violações às famílias. A primeira violação é em relação ao direito de moradia das famílias que estão nesse local há mais de 30 anos e de um dia pro outro recai essa decisão sobre eles sem uma alternativa. Onde vão morar essas famílias que foram despejadas? O direito à moradia é um direito humano, direito universal”, declara a assessoria jurídica da organização.

 

Apesar de não possuírem título de propriedade da terra, Valdecir e seus familiares possuem a posse, pois em décadas na área eles pescam, produzem e mantêm o local cuidado. “Valdeci produz na área  dando-lhe função social, o domínio da terra se deu de forma mansa e pacífica e ininterrupta pelo período de 30 e poucos anos”, afirma a assessoria jurídica que atua no caso. 

 

O marco das ameaças mais recentes se deu a partir da construção do Centro de Convenções Sebastião Tapajós, uma obra do Governo do Pará que deve ser inaugurada em breve. A expectativa é que o espaço receba grandes eventos e traga importantes benefícios para o município, principalmente relacionados ao turismo e infraestrutura, com  a chegada de empreendimentos como hotéis, restaurantes e shoppings, para atender necessidades do público. No entanto, para a população mais pobre que mora no entorno da área, os efeitos negativos desse crescimento urbano podem ser maiores que os benefícios.

 

 

A obra é um presente do Estado do Pará para Santarém. O centro deve receber eventos nacionais e internacionais. Trata-se de um grande influenciador da especulação imobiliária na região / Foto: Tapajós de Fato

 

Constantes invasões de terras têm ocorrido na região, após o asfaltamento da Interpraia, estrada que liga as praias do município. No Plano Diretor de Santarém o perímetro está estipulado como área de expansão urbana, o que pode ser constatado por vários condomínios planejados e em construção na região, como é o caso do condomínio Horizonte Park, localizado na frente do Sítio Bacabal. 

 

Para Valdecir esses empreendimentos próximo de seu terreno estão influenciado tamanha perseguição para lhe tirar da terra. “Com todas essas ameaças, ainda tem esse desmatamento e a construção dessa coisa aí [Centro de Convenções] todo mundo quis invadir terra pra cá [...] esse impacto está sendo muito grande para nós aqui”. 

 

O condomínio em construção, que se projeta como sustentável, abriu um largo espaço de área preservada / Foto: Tapajós de Fato

 

Dona Luzanira, esposa de seu Valdecir, espera que a situação seja resolvida e que todos possam permanecer no local e clama para que os órgãos de justiça  olhem com sensibilidade para a realidade das famílias, ouvindo a todas partes. “A gente não tem para onde ir, são 19 crianças”, finaliza.

 

Seu Valdecir pede que a justiça reveja as decisões e olhe os fatos pelas duas óticas. “A  gente sempre morou aqui, se for para sair a gente vai sair porque é uma ordem judicial. Tem que acabar, tem que haver uma solução”

 

Um histórico de ameaças

 

Dos 34 anos morando no local, seu Valdecir conta que os últimos 25 anos têm sido de perseguição, ameaças, invasões, destruição do patrimônio, violências físicas e de desamparo por parte do Estado. São mais de 20 anos sobrevivendo sem poder ter uma noite tranquila. A família já teve, por duas vezes, as casas demolidas por tratores, a mando da pessoa que se diz dono do local, que já chegou a cercar o terreno invadindo a propriedade da família. Em 2017 houve a primeira demolição, e há dois anos - 2021 - a família foi surpreendida mais uma vez com máquinas destruindo as residências dos filhos que ali decidiram continuar morando. 

 

No ataque de junho de 2021 dois netos de Valdecir dormiam em uma das casas enquanto eram demolidas. Assustadas com a violência, barulhos da máquina que demoliam as residências e a presença da polícia, as crianças fugiram em meio à mata até o lago do Juá, pegaram a canoa da família e ficaram em meio ao lago. 

 

Uma das casas demolidas em 2021. Nesta, dormiam crianças que correram risco de morrer sob os escombros da demolição. A fuga foi a opção / Foto: Tapajós de Fato

 

Em entrevista ao Tapajós de Fato, Seu Valdecir e Dona Luzanira relatam a angústia de conviver com a violência  e criminalização que a família sofre. “A gente veio para cá e aqui não tinha nada, finquei família  aqui, ‘plantemo’ algumas plantas e então vivíamos  em paz aqui, nunca tinha tido problema com ninguém”, relata Seu Valdecir. 

 

A tranquilidade da família acabou quando o empresário, Edilson Martins Muniz, como relata seu Valdecir, “chegou dizendo ser o titular da terra[…] Disse que tinha o título definitivo, eu questionei ele que mostrasse o título se a terra era dele”. De acordo com seu Valdecir, Edilson prometeu voltar no dia seguinte com o documento da propriedade, no entanto, ficou mais de 15 anos sem voltar ao local para reivindicar o direito sobre a terra. 

 

Após o primeiro contato com o empresário, Valdecir procurou o Ministério Público para se informar. Ele relata que recebeu a seguinte informação no órgão: “Olha, se ele está dizendo que já tem o título, o senhor não pode titular a terra, mas, para o senhor saber, tem que chamar um Técnico em Geodésia e fazer o georreferenciamento da terra, se tiver um documento em cima da terra o senhor tem que sair porque a terra tem dono”.

 

Valdecir chamou o técnico que constatou que a terra era uma “terra crua”, uma terra que nunca teve documento. Seu Valdecir ficou sabendo, ainda, que a terra não pode ser titulada pois é uma terra federal, propriedade da Infraero (Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária), a área é uma sobra de terra do aeroporto de Santarém. 

 

Seu Valdecir foi informado que só poderia registrar o georreferenciamento da terra se não houvesse sobreposição com a área da Infraero ou das comunidades do entorno, como não houve, as delimitações foram registradas com a instalação das pedras de identificação. Após a instalação das pedras, Valdecir passou a sofrer acusações de alterar a delimitação, “colocaram que excedi o limite, ele fala que eu tirei a pedra do lugar”.

 

Pedra instalada em uma das delimitações do terreno / Foto: Tapajós de Fato

 

As perseguições voltaram a ocorrer na última década, porém, de  maneiras diferentes. Segundo Valdecir, o empresário não voltou mais ao local, mas  contratou pessoas para perseguir a família, “ele não vem pessoalmente, ele manda fazer”. 

 

Ouvir barulho de tiros no meio da mata passou a fazer parte da rotina das famílias do sítio. O medo de sair no quintal de casa e ser atingido por disparos de balas passou a ser rotineiro. O impedimento de vizinhos do sítio de passar por dentro do terreno para chegar até o lago também ocorria, seu Valdecir relata: “ameaçavam pessoas que vinham para cá quando estavam aí na frente”, essas ameaças seriam feitas, conforme relatado, por seguranças contratados por Edilson Muniz para vigiar o terreno. 

 

A família fez um pequeno campo de futebol próximo das casas. Como parte das intimidações  a família contou à reportagem que um carro com vidros escuros invadiu o terreno e avançou no campo de futebol em direção aos filhos de seu Valdecir. Nesse ataque uma pessoa quase foi atingida pelo carro, que deu meia volta e foi embora. 

 

São muitos anos de agonia e medo, a nova decisão coloca em xeque o futuro das três gerações da família que vivem no sítio Bacabal. No dia 28 de junho, o Juiz da 2ª Vara de Cível e Empresarial de Santarém, Rafael Gresh, acatou o pedido de Edilson Muniz e determinou a Reintegração de Posse voluntária dentro de 15 dias. Após o prazo, o não cumprimento da sentença acarreta em multa diária de R$1000,00 e autorizando o uso da força policial caso haja necessidade.

 

As oito famílias que vivem no Sítio Bacabal estão diante de um total desamparo, visto que não possuem um outro local para ficar e cumprir a sentença. 

 

Outra falsa alegação que recai principalmente em seu Valdecir, que é citado nas ações judiciais, é de que ele teria invadido em 2021 o terreno. “Não é de um dia para o outro que uma mangueira dá fruta, você tem que esperar 10, 15 anos”, reafirmando com exatidão sua chega ao local, “entrei dia 09 de janeiro de 1987”.

 

Na tentativa de se impor na terra, um muro foi construído de maneira irregular / Foto: Tapajós de Fato

 

Diante das acusações, violações de direitos, destruição do patrimônio das famílias, levam seu Valdecir a refletir o seguinte: “eu me sinto abandonado pelas Leis, porque se você vai procurar um órgão é porque você está precisando”. Esta fala do morador é em relação a dificuldade, inclusive,  para registrar Boletins de Ocorrência das situações. Em uma das vezes que tentaram denunciar as ameaças, dona Luzanira conta que foram aconselhados pela polícia a deixar o terreno: “o delegado de lá falou assim, é melhor a gente sair daqui porque eles não estavam brincando, que um dia ou outro eles iam vim só buscar um corpo nosso[…] tudo isso deixa a gente com medo, qualquer barulho todo mundo corre pensando que é aqui”, desabafa.



Dona Luzanira lamenta e denuncia a falta de humanidade na forma como sua família tem sido tratada: “uma pessoa dessa não tem amor no coração, destruiu a casa dos meus filhos, acabou todos os bens deles, geladeira, televisão e ainda quase mata um neto meu que a casa ia caindo em cima dele”. 

 

Mesmo perdendo tudo, as famílias resistem e buscam recomeçar / Foto: Tapajós de Fato

 

Há muito tempo o local deixou de ser seguro, dona Luzanira relata não conseguir dormir direito, “a gente já fica com medo deles chegarem aí e invadir de noite e derrubar as casas  com a gente dormindo, a gente não tem mais nem coragem de sair de casa”. 

 

O futuro imprevisível preocupa a todos os prejudicados com a determinação judicial, seu Valdecir não consegue aceitar, “a gente não sabe, mas pra você sair de um canto que já está há tanto tempo, aonde é que  você vai ficar? Vai ficar com essas crianças jogado na rua?”. 

 

Sair do local implica a insegurança financeira e alimentar das famílias que estabeleceram relações com o espaço / Foto: Tapajós de Fato

 

O preço do progresso e do crescimento custa caro, para as famílias do Sítio Bacabal, que não se beneficiam em nada com as atividades do entorno, está custando a paz, a dignidade, os lares. É o futuro de homens, mulheres e crianças que dependem diretamente do local e dos recursos  dali  para sobreviver que estão comprometidos.

 

*Esta produção teve a colaboração da Assessoria de Comunicação da Terra de Direitos

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