Cultura é tudo o que fazemos e todo o conjunto de costumes e de manifestações artísticas do nosso e de qualquer povo. Ela faz parte da nossa identidade e a nossa identidade ajuda a construí-la em uma relação de interdependência. Quando restringimos a discussão sobre cultura ao saber e fazer artístico, necessitamos de agentes de extrema importância sociocultural que, muitas vezes, fazem arte por amor, pois os custos para a criação, mídia, logística, recursos materiais e humanos de bastidores, sonoplastia, iluminação; enfim, tudo do que um espetáculo precisa para continuar são, em regra muito difíceis de conseguir, problema que seria suplantado se o acesso a editais de incentivo financeiro a atividades culturais fosse mais democratizado.
Bens culturais não são vistos como necessidade básica; assim, o incentivo financeiro à cultura é parco diante da demanda. A falta de valorização dos artistas torna fraca a pressão popular que seria capaz de forçar a elaboração de mais projetos governamentais que fomentassem o fazer artístico, que continua marginalizado pelo estigma histórico de que o artista é aquele que não quer trabalhar. Dessa forma, ainda perdura o preconceito contra artistas.
Durante o regime militar, devido ao fato de que artistas plásticos, músicos, escritores e roteiristas de teatro compunham obras que criticavam o governo, além de execuções, prisões e exílios, os artistas passaram a ser difamados. Tidos como perturbadores da paz e subversivos. Até hoje, muito que os artistas passam é resquício desses discursos que marginalizaram a classe.
Por conta disso, os fazedores de cultura, todos os indivíduos e grupos que são responsáveis por criar, produzir e promover manifestações culturais, herdaram tal marginalização. Isso lhes torna, na visão de muitos, pouco dignos de terem seus trabalhos financiados pelo erário público, situação que define a escassez de editais públicos que fomentem atividades e manifestações culturais.
De 2020 para cá, os fazedores de cultura têm recebido incentivo de leis emergenciais como a da lei Aldir Blanc, iniciativa buscava apoiar profissionais da área que sofreram com impacto das medidas de distanciamento social por causa da pandemia de Covid-19. Essa norma deu origem à lei 14.399/22 que institui a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, o que democratizou um pouco mais a publicação e o acesso a editais direcionados aos fazedores de cultura.
A respeito disso, Keké Bandeira, graduada em Letras, mestra em Antropologia, bibliotecária, poeta, produtora cultural, ativista PCD (pessoas com deficiência) e atriz desde os nove anos, falou ao Tapajós de Fato que “da Aldir Blanc, de 2020 pra cá, a gente teve acesso maior aos editais, sobretudo os editais de incentivo públicos à cultura, né? A primeira Aldir Blanc que teve, ela foi bastante facilitada. Eu não tinha tanta experiência em escrever projeto, mas não tive nem um tipo de problema porque era bem intuitiva a escrita”, comentou.
Ela ressaltou que isso deu base para o acesso a outros editais como o da Secretaria de Cultura do Estado, que segundo Keké era “um pouquinho mais burocrático, mas (...) nada que atrapalhasse no entendimento, na escrita do projeto. É claro que eu falo no lugar de uma pessoa que já está escrevendo academicamente (...) a escrita não me é estranha”. E é aí que aparece outro obstáculo na vida de quem quer fazer cultura a partir do acesso a recursos previstos em editais. A leitura e a escrita acadêmica não são tão populares assim, o que exclui muitos fazedores de cultura que não cursaram o ensino superior.
É claro que se deve levar em conta que o projeto é um gênero de cunho acadêmico e que sua escrita depende de um conhecimento básico a respeito de metodologia científica. Por isso, muitos artistas, vão precisar de contratar produtores capacitados em escrita de projetos. Além disso, é preciso encaixar tecnicamente os projetos nos parâmetros do edital em aberto, gênero textual, cuja leitura também não é, muitas vezes, acessível ao artista.
A produtora cultural ratifica que a maior dificuldade para se ter acesso aos recursos desses editais é, realmente, “o conhecimento sobre a escrita do projeto. Para uma parte significativa da população, sobretudo da população das cidades menores aqui da região do Baixo-Amazonas, ter acesso às informações [a respeito de] como se constrói um projeto cultural, [de] que documentação precisa. O passo a passo mesmo burocrático distancia muito as pessoas de conseguir ter acesso a esse recurso [dos editais]”, fala a produtora reconhecendo seu lugar de privilégio por ter acesso a essa informação e a habilidade de escrita devido ao fato de ter frequentado o ensino superior e ser pós-graduada.
Ela acrescentou que também é importante, a quem deseja se tornar apto a receber o dinheiro pleiteado, cadastrar-se no mapa cultural e ter assinatura digital reconhecida.
Keké denuncia que, no ano passado e nesse ano, um dos piores problemas de quem lutou muito para conseguir recursos previstos em editais foi o não cumprimento das normas previstas no edital da Fundação Cultural do Pará, a respeito dos prazos de pagamento. Ela falou que “o artista, às vezes, ganha [o recuso de] os editais e aí fica uma morosidade no processo, atrasa pagamento e isso eu tenho percebido que tira muito a saúde mental de muitos artistas”, que se programam para receber determinado valor e programam o cumprimento de suas despesas a partir das datas previstas, mas que não foram respeitadas.
Mesmo com entraves a serem suplantados, Keké Bandeira conclui a conversa com o Tapajós de Fato dizendo que o outro grande obstáculo, mas que já tem sido paulatinamente superado é a mentalidade que esses editais são fechados aos artistas da nossa região. Devido a isso, muitos nem tentavam se inscrever. Contudo, o depoimento de quem já conseguiu motiva outros a tentarem. Mesmo que tenham que pagar 10% do recurso captado ao escritor do projeto, o que os artistas até consideram aceitável, mas a grande queixa está na questão do imposto sobre o total arrecadado, que é de 30%.
Claúdio Ferreira de Sousa, multiartista popular – artesão, capoeirista e carimbozeiro – de Alter do Chão, disse ao Tapajós de Fato que a burocracia prova que “o poder público não facilita essa aproximação do artista popular [dos recursos previstos em editais]. Até porque artista é artista. Ele não é um técnico pra elaborar projeto. Então, o artista ele tem muita dificuldade de elaborar projeto e de trabalhar essa questão, de gerir o seu projeto (...). O poder público, a prefeitura e também o estado, às vezes, eles não têm essa sensibilidade até, digamos, cultural, política e social (...). O que acontece é que nós, artistas, pra acessar algum edital, a gente tem que se submeter a algum técnico que saiba elaborar projeto porque é muito difícil falar que na cultura popular tenha um artista que é letrado, que sabe mexer com a tecnologia que os editais pedem”, desabafa.
O Mestre Capoeira (como é conhecido seu Cláudio, acreano, 55 anos, que há 20 anos mora em Alter) faz uma cobrança: “O poder público deveria disponibilizar artistas técnicos para trabalhar nas várias artes, na área do áudio visual, na área do cinema, do circo, mas, principalmente na área da cultura popular porque nós trabalhamos mais com a oralidade. Então a gente tem muita dificuldade na elaboração, na gestão dos projetos”, conclui.
A Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), por meio do Sistema Integrado de Bibliotecas – projeto de extensão “Cumbuca de Saberes” –, a fim de capacitar artistas e fazedores de cultura, realizou um curso chamado “Escrita de Projeto Cultural” no dia 22. O momento serviu para orientar e para tirar as dúvidas a respeito da preparação de um projeto que será submetido a um edital cultural. Keké Bandeira foi a ministrante do curso.