Cobra-grande, Boto, Matinta Perera. Personagens que fazem parte do realismo fantástico amazônico e que chegaram até nós por meio de contadoras de histórias, pessoas com o dom performático de unir voz aos recursos corporificados e que convencem sobre a existência do insólito, do sobrenatural, das encantarias. Além disso, podem fazer o ouvinte se encantar pelos personagens da vida real que constituem histórias de vida. São as Dolinas de quem acertou na loteria da vida. Avós, mães e tias, mulheres que dão luz à imaginação tal qual a lamparina ilumina as casas do povo da Amazônia para quem a eletricidade ainda não chegou. É com base nessa realidade que Francisco Vera Paz e Patrícia Branches conceberam a obra “Histórias da lamparina contadas pela Dolina”.
Os artistas se conhecem de longa data. Francisco que teve bisavó, avó e mãe como referências na contação de histórias, apaixonou-se pela personagem Dolina, criada por Patrícia, mas foi em um encontro no ano passado que eles perceberam que era hora de criar um espetáculo narrativo em que a Dolina seria a personagem central e compartilharia suas histórias com o público.
Nas epígrafes do roteiro, Francisco, que assina o texto, destacou personagens da literatura que são contadores de histórias e que inspiraram a escrita dele. Entre essas narradoras, destacam-se a lendária narradora Sherazade e seus contos para enganar a morte (na obra “As Noites da Arábia” ou os contos de “As mil e uma noites”); a Velha Totônia, contadora de histórias que o romancista brasileiro José Lins do Rêgo criou (e que aparece nas obras “Menino de Engenho” e “Histórias da velha Totônia”); a Mãe Preta, criada por Juvenal Tavares (do livro “Serões da Mãe Preta: contos populares para crianças”).
Francisco dá sua visão a respeito de Dolina e a compara a um dos ícones do cinema brasileiro: Amâncio Mazzaropi – ator, humorista, cantor, produtor, roteirista e cineasta brasileiro, um dos nomes mais conhecidos do cinema nacional, tendo produzido, escrito, dirigido e estrelado 32 produções entre 1952 e 1980, marcado pelos papéis como o "Jeca Tatu".
Francisco Vera Paz elogia a amiga dizendo que “A personagem, que a atriz Patrícia Branches construiu, tem uma faceta Mazzaropiana – O caboclo ao estilo dos filmes de Mazzaropi, com referências da palhaçaria, do picaro e da representatividade literária da Velha Totonia, com uma pitada da Sherezade e das mães-pretas narradoras”. O teatrólogo santareno ressalta que está escrevendo um artigo sobre isso.
O artista continua falando da relação entre a sua obra e o contexto amazônico, em que temos identidades marcantes e na peça teatral “tudo se entrelaça com essa personalidade Afroindígena da Dolina, com o seu arcabouço tradicional. Mas essa tradicionalidade doliniana é cheia de truques (...). No fim das contas, a Dolina vai mostrando que nossas histórias, remédios caseiros, comidas e demais coisas da Amazônia estão vivas e não fossilizadas”. Eis um ponto importante da obra: mostrar que a cultura amazônica de comunidades tradicionais não faz parte apenas do nosso passado, mas ainda está presente hoje e que precisa da nossa valorização, porque esses comunitários são amazonidas como nós.
Para que o espetáculo ganhe vida, é necessária toda a mobilização de um grupo, nesse caso, do Grupo Teatral Kauré. São pelo menos uma dúzia de pessoas que se dividem em diferentes tarefas e dirigidos por Alenilson Ribeiro. Além disso, a trilha sonora conta com a participação de músicos de renome na região, como Júlio Tapará, além da colaboração de Francisco Vera Paz, Alícia Katrine, Fábio Cavalcante. O figurino ficou na responsabilidade de Márcia Corrêa. A sonoplastia ficou por conta de João Carlos Miranda. A produção foi de Leiliane Araújo, Francisco Vera Paz, Elisa Aleixo, Daniel Siqueira e Nilce Pires. A experiência dos envolvidos conta bastante para a qualidade do espetáculo.
O Grupo Kauré já tem mais de duas décadas de palco. 25 anos para ser exato. Segundo Francisco Vera Paz, o grupo “foi formado após a morte prematura de Manuel Maria Duarte Pereira – O Cauré, um jovem agitador cultural, ativista ecológico, estudante universitário e militante político que atuou em Santarém e nos deixou em 1996, aos 25 anos. Embora muito jovem, Cauré foi organizador da I Mostra de Teatro de Santarém (hoje com 33 anos); também foi cofundador da Associação de Teatro de Santarém (ATAS), e grande animador das memoráveis Paixões de Cristo na cidade. O Grupo vem buscando resguardar e manter esse legado em atividade”.
O teor histórico da obra também é carregado por ela fazer alusão aos 50 anos da abertura da Transamazônica e da BR 163, bem como da desapropriação de terras de comunidades como “São João” e “Deus Quando” (vilas que passaram a fazer parte da área de preservação da Floresta Nacional do Tapajós e que ficam por trás da serra do Maguari ou das comunidades de Maguari e Jamaraquá), área visitada devido à presença de gigantescas Samaumeiras. O espetáculo, portanto, está dividida em três partes: PARTE I: Transamazônica PARTE II: Santarém-Cuiabá/BR-163 PARTE III: Maguari – FLONA Tapajós.
Quem leva o público por essa viagem constituída pelos diferentes lugares que representam as partes da obra é Dolina, interpretada pela atriz, pedagoga, contadora de histórias e produtora cultural Patrícia Branches, que também conversou com o Tapajós de Fato. Sobre a Dolina, Patrícia fala que “é um personagem que ela tem na verdade mais de 20 anos. Ela surgiu numa peça de teatro do Grupo Experiência, um grupo lá do bairro do Mapiri (...) que se reunia lá nos altos da igreja [do Menino Jesus] e na casa do nosso coordenador, que era, na época o Darlisson Nobre, e a Dolina surgiu no espetáculo ‘Uma tar de cobra grande’. Ela ganhou tanto destaque que ganhou um outro espetáculo, que era já as ‘Histórias de Dolina’. Ela surge porque era esposa do Mirandolino (...) um homem que diziam que se engerava em cobra”. Algo que faz parte das encantarias da cultura amazônica, um transmorfo. Um ser humano que vira animal e vice-versa.
A atriz se inspira muito nas mulheres da região, nas avós, nas mulheres do bairro do Mapiri, nas vizinhas que tinham origem no interior, nas rezadeiras, pescadoras roceiras, curandeiras. O laboratório para a inspiração e para a construção da personagem foi o contato com mulheres santarenas reais. A artista da Região do Lago Grande sente que representa todas elas. Ela elogia a parceria com Francisco Vera Paz, dizendo que “trabalhar com ele é sempre muito bom. Ele é um artista completo (...) ele fez esse espetáculo com muito carinho. É um espetáculo que é histórico. Ele traz muita referência e representa muito a nossa região, representa muito as nossas comunidades”, conclui.
Dona Dolina subiu ao palco na Mostra de Teatro da Atas – Associação de Teatro Amador de Santarém. Segundo João Carlos Miranda coordenador do grupo de Teatro Kauré, a apresentação “foi uma etapa da execução de um projeto que foi contemplado com um prêmio da Fundação Cultural do Pará, de incentivo à cultura (...) é uma circulação do espetáculo da Dolina em cinco locais para incentivar a literatura (...). Essa personagem criada pela Patrícia Branches, ela conta essas histórias que envolvem o imaginário popular, as lendas e a própria história da abertura dessas estradas. (...) A primeira etapa foi na Etepa [Escola Técnica do Pará]; a segunda foi numa escola no Ramal dos Coelhos, no Eixo Forte; a terceira foi em Alter do Chão, que foi essa do dia 09; e ainda temos mais duas etapas – uma vai ser na Escola de Artes e a última no quilombo do Murumurutuba”. Ele destaca ainda que o projeto objetiva “circular em diferentes lugares, seja em ambiente escolar, seja em ambiente comunitário...o incentivo à leitura”. Dessa forma, a presença dos Alunos da escola Dom Tiago, onde ocorreu a apresentação, e da escola Borari na apresentação em Alter foi uma busca pela ampliação do número de jovens leitores. Além disso, pela escola Dom Tiago ter como diretora a atriz Patrícia Branches, aquela apresentação foi marcante, para ela e para o público.