Terça, 17 de Setembro de 2024
Gênero e Sexualidade Mulheres

Tema da Redação do Enem 2023 faz refletir sobre a condição de trabalho doméstico feminino não remunerado, nem reconhecido

Candidatos que fizeram a prova do Enem tinham que escrever a respeito dos desafios para enfrentar a invisibilidade do trabalho de cuidado das mulheres no Brasil.

09/11/2023 às 12h39 Atualizada em 10/02/2024 às 00h54
Por: Fernanda Lima Fonte: Tapajós de Fato
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Arquivo pessoal
Arquivo pessoal

Todos os anos, milhares de candidatos se lançam a enfrentar 90 questões de diferentes áreas de conhecimento e a temida Redação, fazendo a prova do Enem, que qualifica aqueles que desejam uma vaga no ensino superior em universidades públicas do Brasil e até do exterior.

No último domingo (5), mais de 3 milhões de brasileiros, munidos de seu documento e de canetas pretas, compareceram ao seu local de prova e depararam-se com um tema que faz parte da vida de todos eles, pois todos, sem exceção, só chegaram até ali por causa do trabalho invisível de uma mulher.

Assim que foi divulgado o tema, artistas da web começaram a iniciar um movimento de publicação de obras que expunham o tema de forma descontraída, como a tirinha abaixo da quadrinista e cagistad o Brasil de Fato Helo D’Angelo:

Fonte: https://twitter.com/helodangeloarte

Texto interessante. No entanto, precisamos superar a descontração e partir para o enfrentamento aos desafios da invisibilidade do trabalho de cuidado das mulheres no Brasil. Essa reflexão tem que ser levada a sério para que práticas de mudança da sociedade em relação ao trabalho das mulheres deixem de ser ideias e tornem-se realidade.

A invisibilidade do trabalho de cuidado das mulheres é histórica

Desde as sociedades mais antigas, o trabalho doméstico, o cuidado com a casa, com os filhos e com o marido foi imposto como obrigação às mulheres, as quais eram (e ainda são) socialmente cobradas por qualquer condição de desorganização do lar, culpadas por desvios de conduta dos filhos e responsabilizadas pelo fim do casamento.

Esse padrão eurocêntrico foi implantado pelos colonizadores e essa tradição colonial foi adotada pelas sociedades modernas e perpetuada por valores patriarcalistas e por valores religiosos a serviço do patriarcado. Dessa maneira, é muito comum na celebração de casamento cristão o uso de fragmentos bíblicos isolados os quais sugerem à mulher que ela esteja sempre disponível para suprir imediatamente às demandas do marido, a quem ela deve, segundo essas interpretações equivocadas, obediência.

Os fragmentos mais presentes nesses rituais é “mulheres, cada uma de vós seja submissa ao próprio marido” (Colossenses 3:18) e “As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor; porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo. Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido” (Efésios 5: 22-24).

Mas a quem interessa essa submissão feminina? Ao próprio sistema, pois é preciso que alguém cuide do lar daquele que vai produzir riqueza e da futura mão de obra que garantirá para o mercado de trabalho o lucro, a mola propulsora do capitalismo.

O Tapajós de Fato conversou com uma de suas leitoras, Roseane Serrão, 40 anos, consultora e curadora de literatura infanto-juvenil, licenciada em Letras pela Universidade Federal do Pará. Ela diz que é mãe em tempo integral há 9 anos, praticamente, mas começou a trabalhar quando seu filho mais velho tinha menos de dois. Ele acompanhava a dedicação laboral da mãe. Contudo, as coisas ficaram bem complicadas quando ele engravidou pela segunda vez.

Segundo Rose, como ela gosta de ser chamada, “foi uma gravidez bem complicada, bem traumática porque eu tive pré-eclâmpsia, tive pressão alta, trabalhava demais e ele nasceu prematuro. Então, a partir desse evento, a gente, que é mãe, em alguns momentos a gente se culpa de ter feito algumas coisas que a gente acha que naquele momento era para ser do jeito que ocorreu, mas a gente acaba se culpando por causa dessa sobrecarga mesmo que vem mais para nós [mulheres]”. Um homem não teria esse sentimento de culpa de trabalhar durante uma gravidez de risco devido ao fato de que ele não carrega no ventre um bebê, outro trabalho invisível aos olhos sociais.

Devido ao trabalho do marido, ela teve que se mudar com a família para outro estado onde não tinha a mãe, nem a sogra ou qualquer rede de apoio; então, ela, em comum acordo com o marido, decidiu cuidar da casa e dos filhos em dedicação exclusiva. Ela contou que “no começo, foi tudo muito bom porque eu vinha anos e anos na labuta da sala de aula (...) eu já vi os dois lados da moeda e nem um dos dois é fácil; tanto você estar trabalhando fora e chegar em casa e ainda tem que dar conta de algumas coisas (...) a demanda mental é maior para nós, mulheres. E essa coisa de pessoas, que estão próximas, de não reconhecerem ‘ah, mas tu só está em casa e tu não faz nada’. (...) Se você decide trabalhar fora, você vai ser apontada porque você está perdendo momentos de crescimento, de coisas que seus filos vivenciam. Se você decide cuidar deles (...), você também é apontada porque você está deixando sua carreira de lado, você está parada no tempo e, além dessa cobrança externa, há também a nossa cobrança interna”.

Roseane Serrão/ Foto: arquivo pessoal

Roseane mencionou ainda que, como está de volta a Santarém, pretende voltar à vida acadêmica e cursar mestrado, porém sabe que não será fácil conciliar vida de pesquisadora strito senso com a vida cheia de atividades domésticas. Lembrou ainda que algumas decisões são difíceis, mas têm que ser tomadas e isso só é fácil para quem está de fora. Foi o que aconteceu quando ela passou em um concurso para magistério superior; entretanto, não assumiu porque deu prioridade aos filhos, o que ela fala com certo orgulho.

Para Beatriz Aguiar, 31 anos, “Apesar do cansaço do dia a dia, para mim, é o serviço mais valioso que posso fazer: olho para minha vida e vejo quão privilegiada eu sou em ter minha família e minha casa. Mas também é verdade que tive que aprender a não me cobrar sobre dar conta de tudo, afinal nós nunca damos”. Beatriz é exceção. A maioria das mulheres não consegue lidar com isso e frustra-se, chegando a ficar mentalmente doente.

Bia diz ainda que “Apesar de não ter nenhuma remuneração em dinheiro, meu lar não é um fardo, a mão de obra que ele me traz também não. Talvez minha opinião vá na contramão do que muitas mulheres pensam, e eu lamento por isso, por elas não terem esse mesmo prazer, mas não as menosprezo, cada uma tem uma história cercada de altos e baixos, muitas vivendo extrema escassez, ansiando por dias melhores. Podemos aprender umas com as outras sobre como levar o trabalho ‘invisível’ como nosso lar de maneira mais leve e valiosa”, conclui.

Beatriz Aguiar e sua filhinha de 4 aninhos / Foto: arquivo pessoal

Mulheres: invisibilizadas pelo sistema

A sociedade exige produtividade, empenho, agilidade e jogo de cintura para lidar com os desafios que se apresentarem na rotina. Todas essas demandas são atribuídas à grande massa de trabalhadores que sustentam a base desse sistema, em sua maioria, homens, pais de família que desempenham o papel de sujeitos ativos economicamente, enquanto que às mulheres, a maioria, esposas foi dada a responsabilidade de ficarem em casa.

A verdade é que elas atuam “por trás da coxia”, de forma invisível socialmente, enquanto que eles aparecem como estrelas principais e a eles são dados os “ouros”, a eles são pagos as horas extras trabalhadas, são promovidos quando a sua produtividade é maior, são reconhecidamente ativos no mercado e assegurados legalmente.

Em contrapartida, para elas não há seguridade social, não são reconhecidas as horas exaustivas de trabalho e muito menos são asseguradas no cuidado de si, como sujeitos dignos de amparo socioeconômico e emocional. Quem cuida de quem cuida do mundo dos visibilizados? Quem cuida daquelas invisibilizadas? 

Muitos chegam a romantizar a condição de servidão das mulheres afirmando que a tarefa doméstica, o senso de limpeza, a ordem e a organização, bem como o jeito para varrer, lavar, passar e cozinhar seria um dom de Deus, dado exclusivamente a elas, não aos homens. O que deve ser frisado é que todo esse trabalho se aprende e que qualquer pessoa, homem ou mulher pode fazê-lo, daí, comprova-se o quão infundado é esse argumento.

Esquecidas, as mulheres direcionam a energia para dividir a atenção como cuidadoras, seja da casa como administradoras, governantas, cozinheiras e faxineiras; seja dos filhos como educadoras, babás, psicólogas e enfermeiras ou ainda cuidando do marido, numa jornada cíclica que se assemelha a uma prisão sem grades, sem hora de almoço, sem intervalo para descanso, sem extras e sem horas para dormir.

Elas assumiram um papel social tão importante para a construção de um mundo que funciona aos moldes do patriarcado. Elas não tiveram e, muitas, ainda não têm escolha. Anularam suas vontades, desistiram das suas carreiras, engavetaram seus sonhos e aniquilaram seus auto-cuidados. Foram engolidas pela exaustiva rotina de cuidar dos outros e nunca de si mesmas. 

O pecado maior de todos no ambiente social é a falta de reconhecimento do trabalho doméstico. Muitas mulheres percebem o valor do trabalho que executam, mas guardam para si essa consciência. Algumas já perderam a esperança de reconhecimento, o que torna mais lento o processo de diminuição das desigualdades de gênero. Todavia, a luta pela equidade deve ser de todos.

Deve-se ressaltar que o cuidado com a casa e com a família é de responsabilidade de todos os membros da família. Não é exclusividade das mulheres e deve ser opção. Não uma imposição.

Portanto, é imperativo que o Estado, reveja e direcione políticas públicas a essas mulheres que, na lida de resistência, são sujeitadas à dupla e até à tripla jornada. Por isso, é importante a discussão dessa problemática não só no Congresso Nacional, mas no âmbito familiar, nas escolas, etc., pois, além de um plano de recurso assistencial para essas mulheres, é preciso definir ações de intervenção capazes de promover a valorização e o reconhecimento do cuidado feminino para com a família e para com o lar. 

Deixo aqui o meu tributo às MARIAS, ISABELLES, SUELIS, LÚCIAS, HELEIZES, ALANAS, MARTAS, FRANCISCAS, FERNANDAS, LIZIAS, DAIANAS, RENATAS, GILMARAS, JUSSARAS, RAIMUNDAS, ROSIMEIRES, ROSEANES, BEATRIZES, GRAÇAS, INÊS, ROSALBAS, LUCIMARES, APARECIDAS, ENEDINAS, MÁRCIAS, VERAS, ZULEIDES, GEISAS, MARÍLIAS, ANAS, ROBERTAS, LUÍZAS, MÔNICAS, EDILEUSAS, JANES, ELSILENES, GLEICES, LUANES, SUELENS, EGISLANES, SOCORROS,  SIMONES, KARINAS, PRISCILAS, JACQUELINES, CARLAS, JULIANAS, LARISSAS, YARAS, LETÍCIAS, EDNAS, VITÓRIAS, EVAS, STEPHANES, ÉRICAS, MARCELAS, CLARAS, DANIELAS, JEOVANAS, GREYCES, AMANDAS, CAMILAS, ALINES, DENISES, EDUARDAS, ELIZÂNGELAS, JÉSSICAS, SOLIANES, CRISTIANES, DARLIANES, CÉLIAS, REGINAS, TEREZINHAS, LUANAS, PATRÍCIAS, SARAS, FLÁVIAS, MANUELAS, ELIS, HELOIZAS, ELAINES, MARIS, JOELMAS, POLIANAS, DIANAS, JÚLIAS, LAURAS, IRACEMAS E TANTAS OUTRAS QUE SÃO “MULHERES” IMPORTANTES PARA O BRASIL.

 

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