Ser sustentável nunca sai de moda. Entretanto, quando se fala em meio ambiente e desperdício de água potável, é incontestável que se pensa logo em pecuária extensiva e em grandes plantações. Não que seja irrelevante pensar nessas atividades produtivas. Contudo, você já parou para pensar em quanto de água foi gasta para você usar aquele modelito de final de ano? Aliás, aqueles modelitos? Por tradição – e por consumismo – não se repete no Réveillon a roupa do Natal, o que aquece o movimento no comércio lojista e alavanca a economia local. Não à toa é o período com maior número de contratações temporárias e que podem virar efetivas dependendo do desempenho do vendedor.
Apesar da vantagem econômica para os empresários do ramo de confecções, o alto consumo representa perdas ao meio ambiente. Por isso, especialistas pedem para que se pense além do econômico. É importante refletir se a compra é, realmente, necessária, uma vez que é comum, diante de uma roupa que se deseja, haver uma confusão entre o “eu quero” e o “eu preciso”, que são completamente diferentes. Nestes tempos, em que a natureza está dando o troco às ações antrópicas irresponsáveis, na hora de comprar roupas, podemos ser responsáveis adquirindo roupas seminovas – e até mesmo novas – em brechós e em bazares, que são uma alternativa sustentável, pois incentiva ao reuso, evitando que milhares de litros de água potável, que é um recurso finito e necessário à sobrevivência, e energia elétrica sejam desperdiçadas na fabricação de tecidos e de confecções.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), a indústria da moda está entre as mais poluentes do mundo. Ela é responsável por 8% dos gases do efeito estufa e por 20% do desperdício de água no mundo. Para produzir uma peça de jeans são gastos algo como 7.500 litros de água.
A água invisível na roupa nossa de cada dia
Segundo o Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento, do Ministério das Cidades, o brasileiro consome de forma direta, em média, 154 litros de água por dia. Isso é 44 litros a mais que os 110 litros que a Organização das Nações Unidas (ONU) considera necessária para uma pessoa sobreviver, mas boa parte desse consumo não sai das torneiras de casa, nem do trabalho. É de água invisível, aquela que está presente no processo de produção de vários itens de nossa rotina como o tecido.
Na tentativa de quantificar a água doce “invisível” consumida no mundo, o pesquisador da Universidade de Twente, Arjen Hoekstra, da Holanda, criou, em 2002, o conceito de Pegada Hídrica, um indicador, ligado à responsabilidade ambiental, que leva em consideração o uso da água de forma direta e indireta, tanto do consumidor quanto do produtor, e define o volume total de água doce utilizado para produzir os bens e serviços como as roupas que compramos. E você sabe quantos litros de água são gastos para fabricar uma camisa de algodão de 250 gramas? 2495 litros.
A Pegada Hídrica será azul, quando se referir ao consumo de água superficial e subterrânea ao longo de sua cadeia produtiva. Nesse caso, refere-se à perda de água disponível em uma bacia hidrográfica. Essa perda ocorre quando a água evapora, retorna a outra bacia ou ao mar, ou quando é incorporada a um produto.
A Pegada Hídrica será verde quando se referir ao consumo de água de chuva, desde que não escoe. De acordo com a Water Footprint, a distinção entre as pegadas hídricas azul e verde é importante. Isso porque os impactos hidrológico, ambiental e social, bem como os custos de oportunidade referentes ao uso de águas superficiais e subterrâneas para a produção, diferem muito dos impactos e custos do uso da água da chuva.
Enquanto as pegadas azul e verde têm relação com a disponibilidade de água, a pegada cinza se refere à poluição e é definida como o volume de água doce necessário para diluir a carga de poluentes.
Consumidor consciente reutiliza roupas
O atual modelo de desenvolvimento da sociedade carrega um forte apelo ao consumismo uma vez que que, para muitos, o “ter” é mais importante que o “ser” e os recursos naturais são usados sem reflexão por essa sociedade de consumo. Isso não é nada sustentável. Essa cultura do consumo, em especial, de roupas novas, acaba sendo incentivada pelas mídias.
O que as figuras populares da televisão, do tiktok, do Insta e de outras redes sociais usam vira moda e faz confundir o querer e o precisar. Desde que somos crianças somos bombardeados por essas ideologias consumistas que podem nos fazer acumular o que é inútil. Os meninos são induzidos ao consumo de roupas do herói da moda e as meninas querem ter o closet quilométrico da Barbie. Esses personagens deseducativos criam gerações de consumidores não conscientes.
A popularização de redes sociais em que se postam fotos, dando à imagem importância maior do que ela realmente tem, criou a impressão de que roupas, por mais caras que sejam, tornaram-se descartáveis. Você não quer aparecer na selfie tirada em um evento com a mesma roupa usada em um outro evento recente, nem quer aparecer com uma roupa usada há muito tempo. Na primeira situação, porque está manjada; na segunda, porque será velha. A necessidade de ter a aprovação alheia faz com que a consciência ambiental fique em segundo plano. Assim, uma peça, pode ser usada apenas uma vez. Entretanto, o desapego em reuniões de troca ou a venda em bazares e em brechós é uma alternativa viável adotada por consumidores conscientes.
Tapajós de Fato conversou com a professora universitária e consumidora consciente Ana Betânia Ferreira, que falou de suas sustentáveis ações individuais, mas que fazem muita diferença, em prol do planeta:
“Na realidade, eu já faço isso há muito tempo (...). Inclusive, (...) eu tenho um grupo de amigas que a gente sempre trocava roupa (...). Nós fazíamos tipo um encontro de amigas, onde cada uma levava a sua roupa e lá a gente trocava ou, de repente, comprava da amiga. Então, isso é uma coisa que eu acho muito bacana muito válida, então, eu gosto assim de participar. Eu acho importante porque não só a questão do consumismo em si,
tem a responsabilidade também (...) com o meio ambiente. De repente, eu engordei [ou] eu tenho uma roupa que não serve mais em mim e ela está boa, dá para outra pessoa usar, beleza. Ou, de repente, [se] eu emagreci, também eu posso passar a roupa para outra pessoa. E isso, para mim, não é só com relação a roupa. É com relação a tudo. De coisas de casa. Às vezes, a gente compra alguma coisa para casa porque tá precisando, [em] determinado momento, mas depois tu não precisas mais e tem outra pessoa que precisa. Então, você pode passar para essa outra pessoa”, concluiu a consumidora consciente e sempre elegante.
Um consumidor consciente sabe da importância dos 5 Rs da Sustentabilidade:
Repensar hábitos e atitudes de consumo;
Recusar produtos que geram impactos ambientais e não sejam essenciais;
Reduzir a geração de lixo;
Reutilizar, aumentando a vida útil de produtos;
Reciclar materiais que sirvam de matéria prima para outros produtos.
Esse tipo de consumidor sabe que o futuro do nosso planeta depende do nosso consumo. Dessa forma, antes comprar uma roupa, ele reflete a respeito dessas atitudes sustentáveis e vai atrás de onde possa encontrar aquilo que ele seja capaz de reutilizar: ou em um bazar, ou em um brechó. Dessa maneira, é possível quebrar o ciclo da roupa descartável, que gera mais lixo e, consequentemente, mais poluição.
Thais Yasmine Gondim, consumidora consciente, mestranda em Letras, professora de Língua Espanhola e atuante revolucionária contra-colonial, em conversa com o Tapajós de Fato, deu a sua visão a respeito da importância de reduzir a produção de lixo comprando em brechós e em bazares:
“Vamos fazer a moda circular. Vamos fazer as roupas circularem, né? E eu vejo que a gente tem até que quebrar um pouco a ideia conceitual e até colonial de alimentar o capitalismo que é tipo: ‘Ah! Para eu ficar bem vestida, eu tenho que comprar uma roupa nova. Eu tenho que alimentar as grandes marcas’, vamos dizer, assim. Tudo bem! Isso faz parte, mas aí, quando tem as roupas de brechó, você pode economizar e também ser contra-colonial, porque você está usando o que seria o lixo, o descarte. Você está fazendo aquela roupa ter uma nova função, uma nova repercussão na sua vida, que teve na vida de outras pessoas e você vai ressignificar na sua vida. Então, eu vejo muito assim: as roupas de brechó, a ideia de comprar coisas usadas que são conservadas é uma forma também ecológica e sustentável de evitar lixo no planeta Terra, né?”.
Atualizada nas notícias de relevância ambiental, ela também comentou a respeito da montanha de roupas descartadas no deserto do Atacama, constituída por peças inexplicavelmente abandonadas. É roupa desviada de ações humanitárias nos Estados Unidos, pela Europa e Ásia e enviada ao Chile para ser revendida. Devido ao baixo preço, as que não são vendidas vão parar no lixo.
“Em espaços onde era para ser preservado e acaba sendo amontoado de roupas descartáveis. Então, eu vejo que o mundo precisa mudar essa ideia de que [para] estar bem vestido você precisa comprar uma roupa muito cara ou sei lá o que, mas para estar bem vestido você precisa primeiro vestir a si mesmo, né?, e a roupa é um complemento. Mas, eu vejo que é essa possibilidade de sustentabilidade de pensamento... eu acho isso muito importante de ser alimentado na região amazônica, já que a gente tem uma floresta e tem que cuidar dessa floresta e evitar o descarte de roupas, né?, e fazer essa roupa circular em outros espaços de poder, em outros corpos também de poder é importante. Eu vejo que a sustentabilidade tá aí: em reaproveitar, pagar mais barato e fazer a moda circular de forma a valorizar todos os tipos de corpos também”, encerrou a jovem.
Outra maneira de reutilizar uma roupa que você já usou sem parecer que está repetindo peça, é transformando-a em uma nova peça. É só encontrar uma boa costureira que lhe ajude a fazer a transformação da veste, por exemplo, um macacão em duas peças: uma blusa e uma calça. Cada uma pode combinar com outras diversas peças, criando muitos looks diferentes. Isso permitiria a utilização e a reutilização de peças, garantindo também um consumo sustentável.
Brechós e bazares em Santarém
A palavra “brechó” deriva da palavra de origem francesa “brocante”, que pode ser traduzida como “loja de antiguidades”. No Brasil, o termo passou a ser usado para se referir a lojas que vendem roupas e objetos usados, que geralmente são de segunda mão ou vintage, ou seja, que foi usado, mas que ainda se encontra em bom estado de conservação e qualidade.
Em Santarém, há um grande número de brechós, mas que, muitas vezes, unem forças para ampliar o alcance de consumidores nos bazares. O Bazar de Garagem é muito popular em Santarém, pois torna boas roupas acessíveis, inclusive, à população mais carente, ofertando peças de roupas de 10 até oitenta reais.
O Tapajós de Fato falou com a coordenadora Carol Marques Pereira que disse como surgiu o bazar:
“O evento Bazar de Garagem surgiu em 2022, quando eu voltei em Santarém. Eu morava em Manaus. Lá em Manaus eu tinha um brechó on-line que eu montei na época da pandemia [em 2020]. Fui recolhendo as peças que eu não usava, tinha peça nova, peça que eu usei só uma vez. Aí eu disse ‘Não dá. Vou fazer alguma coisa com isso’. Montei um brechó online e deu super certo. Então, eu tive que voltar em 2022, para cá. E quando eu cheguei, eu percebi que era muito escasso esse tipo de evento, tipo de bazar, não tinha brechó; então eu pedi sabedoria a Deus. Pedi mesmo: “Senhor, me dê sabedoria, me dê umas ideias, que eu preciso aplicar aqui pra criar alguma coisa”. E, com certeza, ele me deu, olha. Aí, então, eu pensei: pra eu montar o meu brechó aqui Santarém eu não ia ter muita visibilidade, porque eu não via isso. Então, eu tive que criar um evento, pra poder promover o meu brechó, né?; então, aí foi que eu tive a ideia de criar um encontro com todos os brechós. Não todos, né?, uma parte pra mostrar o que é um brechó, o que é um bazar. Então, eu resolvi pesquisar. Pesquisei aqui sobre os brechós daqui. Fui em cada perfil que eu achava de brechó. Falei minha ideia. Umas dez pessoas concordaram comigo e vieram fazer a nossa primeira edição do bazar que aconteceu em maio de 2022 (...). No início, o público foi bem tímido, mas as meninas gostaram, as meninas que vieram participar comigo, e eu já fui pensando na segunda edição”.
Carol falou sobre o sentimento de estar à frente de uma proposta tão importante para a preservação do planeta:
“É uma satisfação, né? Um sentimento de satisfação e alegria em saber que eu posso de alguma maneira ajudar a minimizar os impactos ambientais que são causados pela produção da roupa e pelo desperdício, porque muita gente nem conhece como é feito uma calça jeans, o gasto de água e energia que leva pra ser feita essas peças. Qual é a mão de obra que é usada, muita gente desconhece. E o que me deixa bem empolgada também é o fato das pessoas ressignificar aquelas peças. O que pra uma pessoa não tem mais valor, pra outra, era tudo que ela precisava naquele momento e é isso que eu vejo frequentemente no bazar”.
Além disso, a coordenadora do Bazar de Garagem defende que “moda sustentável deve ser um estilo de vida pra gente levar pra vida, né?! A gente vai tá contribuindo pro nosso planeta e mostrando para [futuras] gerações, uma maneira de não desperdiçar, [além de] ensinar a dar valor a uma peça, significar, né, as coisas. Pesquisar como é que vem aquela por onde passa todo esse processo de produção o que que acontece o que que tá envolvido numa produção de peça, eu acho que quando as pessoas começam a conhecer como é feito, pra onde vai uma peça que não é mais utilizada, elas começam a dar mais valor. A gente tem é que fazer a moda sustentável, né?!”, finaliza, a empreendedora sustentável.
O Tapajós de Fato também conversou com a gentil Rebeca Alloggio, que é sócia-fundadora do SimSim Brechó e falou como foi o começo:
"Por trabalhar muitos anos em lojas de roupa, sempre amei me vestir com novas peças. Nisso, acabei me tornando um pouco consumista. Então, quando conheci o mundo dos brechós e bazares, de início, achei um novo meio de achar roupas icônicas e lindas, pagando pouco. Era muito prazeroso o processo de garimpar, transformar uma peça ‘velha’ em nova. Com o tempo, comecei a querer desapegar de roupas que já não usava mais, levava elas pra vender em bazares da faculdade, e depois montei com amigas um perfil no Instagram pra divulgar/vender as nossas roupas, o que começou como um meio de conseguir um dinheiro extra, começou a ser prazeroso pra mim. Às vezes, eu não tinha roupas pra vender, mas logo me candidatava para produzir fotos e looks pro nosso bazar on-line. Com o tempo, comecei a ir garimpar em bazares. Fazia uma curadoria em peças [em] que eu via futuro, e logo colocava à venda, no meu novo perfil @simsimbrecho, que criei em 2018 sozinha".
Ela se orgulha de ser autônoma e fala que trabalhar de carteira assinada pode ser ruim:
"Quando saí do meu último emprego CLT (2019), falei que não queria mais trabalhar pros outros (meio traumatizada) e, nisso, minhas amigas que viam futuro no meu hobbie, super me incentivaram a levar a sério o SimSim. E aos poucos, e sempre acreditando no meu trabalho, o SimSim se tornou o que é hoje. Tenho sócia, uma loja linda de viver, uma equipe que nunca imaginaria que teria e muitas clientes e fornecedoras MARAVILHOSAS!”.
Rebeca falou sobre ser engajada em relação ao meio ambiente:
"É gratificante, de várias formas. Sustentável e economicamente. Me admiro de ver como o meu trabalho, minha forma de mostrar roupas, que seriam descartadas, ganham um ciclo de vida mais longo, viram alvo de desejo, assim como nos sentimos quando vemos uma peça em loja ‘nova’. Ver como minhas fornecedoras e clientes veem o SimSim como um meio de desapegar, ganhar um dinheiro extra e poder adquirir peças que novas não conseguiriam comprar. Os brechós vieram pra fazer a moda circular. Consumir em brechós é uma das formas mais sustentáveis de se vestir, em um mundo que tanto produz, que tanto descarta."
De acordo com a arrojada empresária, é cada vez maior a quantidade de consumidores que não tem preconceito para com roupas de segunda mão:
"A cabeça das pessoas está mudando, e logo os preconceitos que ainda se tem nesse meio, vai diminuir ainda mais. Já conseguimos mudar a cabeça de muitas pessoas que antes não consumiam peças de segunda mão. Uma pessoa que sabe o seu estilo, que não se amarra em preconceitos antigos. Quem consome moda sustentável envia a mensagem de priorizar práticas éticas, ambientalmente, conscientes e socialmente responsáveis na indústria da moda, promovendo um estilo de vida mais sustentável para o bem do planeta e das gerações futuras."