Em muitas cidades da Amazônia, a população enfrenta o sucateamento e a superlotação do sistema público de saúde. Em Santarém, no oeste paraense, por exemplo, percebe-se o hospital municipal com atendimento parcial (devido a um incêndio na ala pediátrica) em setembro do ano de 2023, o hospital regional com uma longa fila de pacientes esperando por um leito, a UPA com pacientes em situação de urgência sendo atendidos em cadeiras e unidades básicas de saúde funcionando predominantemente como pontos de vacinação, o que também é necessário, porém o acesso a um atendimento médico não tão simples, nem fácil, de conseguir. Ainda assim, mesmo de forma custosa e sofrida, há acesso ao sistema público de saúde. É ruim, mas pior ainda é a situação de comunidades e de aldeias, onde nem isso há.
A distância tem sido a principal desculpa dos administradores públicos para tentar justificar tal abandono. Entretanto, o acesso à saúde é um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal de 1988, que prevê em seu artigo 6º que essa garantia deve alcançar todo o povo brasileiro. O acesso à saúde é um dever do Estado, que tem sido negligente quanto ao atendimento adequado aos moradores de comunidades e de aldeias, como se eles não fossem vulneráveis a doenças, nem a acidentes. Só quem já passou por uma emergência em uma área isolada sabe o valor do acesso ao sistema de saúde.
O fato é que o atendimento a essas comunidades custa bastante, mesmo que o chamado envolva alguma situação grave, como ocorreu quando chamaram a perícia para apurar a morte do líder indígena Adamor Farias Neves, o “Dadá”. A equipe do Centro de Perícia Científica removeu o corpo mais de 24 após ser acionada. Segundo a cacique Irinilce Kumaruara, da aldeia Vista Alegre do território Kumaruara, ele [Dadá] ficou lá abandonado “como se não fosse um ser humano, como se fosse um animal”. O problema é que o tempo entre a hora da morte e a análise do perito, pode gerar conclusões enganosas.
A cacique falou ainda que eles se sentem “esquecidos no território pelo poder público. A gente não tem assistência à saúde. A gente vive sofrendo há vários tempos aí com picada de cobra. A gente não tem acesso à saúde... tipo uma saúde que a gente tenha retorno de buscar os nossos pacientes dentro das aldeias. Chega até a óbito por causa da assistência de saúde que o Samu não vai e a Sesai [Secretaria de Saúde Indígena] tem uma aeronave que só vai de dia, à noite também não vai e o paciente fica dentro a aldeia até que chega os socorros nos outros dias (...) o helicóptero só vai de dia e a lancha vive quebrada (...) a gente pede ajuda da Atufa [Associação de turismo fluvial de Alter do chão] de Alter do Chão. Eles que dão suporte pra gente; mas, quando o vento tá forte, não tem como ir buscar”.
Ela falou também a respeito da limitação do serviço prestado: “quando vai a saúde indígena, vai a vacina e não leva o remédio, não faz exame (...) a gente não tem um posto de saúde com remédio pra combater enfermidade de mordida de cobra. A gente não tem. Então, tem que vir pra Santarém”, lamentou a liderança indígena.
O cacique Juarez Munduruku também compartilhou com o Tapajós de Fato as dificuldades que o seu povo enfrenta: “Hoje, a gente ainda tem essa dificuldade na aldeia. A gente sabe, todo mundo sabe, que a nossa saúde indígena, ela vem enfrentando uns problemas muito sérios, falta de atendimento, que só a Sesai, acho que ela não tá dando conta, é preciso essas políticas públicas também trabalhar com parceria com a Sesai. Eu acho que se fosse assim, melhorava um pouco. Não ficava 100%, não melhorava 100%, mas ela ajudava bastante (...). Aqui no baixo, no médio Tapajós, todas as aldeias, não tem posto de saúde. A gente não tem posto de saúde nas aldeias (...), então, isso traz dificuldade pra gente, né? O atendimento fica muito difícil pra ser socorrido esses pacientes, por exemplo, se acontecer uma picada de cobra não tem como socorrer, porque as distâncias das aldeias são muito distantes, difícil pra esses pacientes”.
A indígena Jéssica Kumaruara falou que “não tem hora para alguém passar mal dentro da aldeia. Os nossos medicamentos caseiros são os nossos primeiros socorros, mas quando se agrava, pedimos socorro para levar aos médicos”. Ela sugere como solução “ter uma lancha do nosso território, no território Kumaruara e também os contratantes, né? Os barqueiros contratantes pra fazer essa remoção”. A indígena falou ainda sobre o posto de saúde na aldeia onde ela mora: “Tem um posto de saúde que fica na minha aldeia, que é Suruacá, mas a enfermeira, às vezes, a gente já ouviu de parentes de negar [atendimento]. Tipo não vai atender porque não é plantão dela”. Jéssica encerra reafirmando a necessidade de uma ambulancha sempre estar do outro lado do Tapajós para transportar o mais rapidamente possível quem necessite de atendimento médico.
Atendimento de saúde aos indígenas
A dificuldade de acesso ao sistema de saúde tem sido mais um dos descasos enfrentados pela população indígena da Amazônia. As aldeias contam com o esforço de um pequeno grupo de profissionais, se levarmos em conta a quantidade de indígenas precisando de atendimento, que fazem um esforço imenso para chegar até onde se encontram as aldeias de diferentes etnias.
Nivaldo Ferreira, enfermeiro experiente no atendimento de aldeias no interior da Amazônia, por ter muitos anos de trabalho com saúde indígena, contou que as principais dificuldades enfrentadas são “logística e a dificuldade no acesso a todas as aldeias”, o que dificulta a chegada de materiais necessários no atendimento aos indígenas.
Ele contou ainda como funciona o regime de trabalho: “A equipe passa geralmente 30 dias em área e folga 15, mas é uma aldeia que usamos de base e várias próximas para dar assistência aí o deslocamento é feito de carro, voadeira, avião ou helicóptero”. O enfermeiro passou 14 anos na região de Jacareacanga lotado no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Rio Tapajós, que está sediado no município de Itaituba, no oeste paraense.
Para melhorar o acesso dessa população ao sistema de saúde, o enfermeiro diz que é necessário “maior número de equipes multidisciplinares para dar assistência em todo território e mais investimento em equipamentos para deslocamento (carro, voadeira, etc.) e infraestrutura dentro do território”, conclui.
Atendimento de saúde às comunidades do interior
Certamente, as comunidades do interior têm carência de atendimento pelo sistema de saúde. A ausência do Estado onde mais se precisa pode trazer consequências negativas à vida da população mais pobre. No contexto ribeirinho amazônico, há três formas principais de os ribeirinhos receberem assistência à saúde: procurando atendimento na sede do município ou na capital; através de equipes de saúde que se deslocam por intermédio do Barco da Saúde ou da Unidade Básica de Saúde Fluvial; ou recebendo na comunidade barcos missionários de Organizações Não Governamentais (ONGs).
Em 2010, o Ministério da Saúde lançou o Programa Saúde da Família Fluvial, uma política de saúde pública para toda a área da Amazônia Legal e do Pantanal. Na verdade, tudo começou inspirado em uma ação do Projeto Saúde e Alegria (PSA), que construiu um novo modelo de atendimento itinerante em saúde. O navio-hospital Abaré I começou a funcionar em 2006, atendendo 15 mil ribeirinhos de áreas remotas do Tapajós, com 93% de resolutividade – ou seja, só sete a cada 100 pacientes encaminhados a serviços de saúde em centros urbanos.
Outro trabalho importante desenvolvido na região é o Abarcar, fundado em 2021, por Josué Andrade, estudante do nono semestre de medicina que conta com a parceria da ONG Médicos pelo Mundo. O projeto visa a levar ações médicas e sociais com recorrência para a região de várzea e do Tapajós. O fundador teve uma das experiências mais marcantes de sua carreira acompanhando os atendimentos prestados à população do interior.
Ele relatou isso ao Tapajós de Fato: “Meu pai, nascido no Aritapera, sempre fez questão de me levar para visitar nossos parentes, o que me fez criar vínculos, conhecimento local. (...) Expedições missionárias (...) Amazônia a dentro encheram meus olhos com comunidades afastadas necessitando de cuidados básicos, lugares inimagináveis e mágicos. A partir dessa imagem tremeluzente, definimos nosso propósito: que toda comunidade receba atenção e cuidados necessários ao bem-estar”. O jovem de 23 anos, que hoje mora e estuda em São Paulo, sempre quis dar a devolutiva social às suas origens, mas as ações só são possíveis graças às parcerias que cederam “medicamentos, alimentação e barcos-UBS, na contrapartida de levarmos profissionais da saúde”.
Josué destaca a receptividade do povo: “É o que geralmente encontramos nas comunidades: pessoas alegres, gentis e amorosas em busca de respostas para os problemas mais simples”. Ele citou desafios da ação: “Nosso maior amigo também é uma de nossas maiores barreiras no planejamento das expedições: o rio. Nós dependemos da dinâmica da seca e da cheia para chegarmos nas comunidades, o que deixa algumas comunidades sem a chegada de barcos-UBS por um período de 3 a 4 meses”. Quanto às principais necessidades dos ribeirinhos, o estudante de medicina diz que “Os casos de cáries sem dúvidas, devem ser nossos maiores desafios, que poderiam ser facilmente resolvidos com fluoretação da água. Outra grande necessidade das comunidades ribeirinhas é o atendimento por oftalmologistas, que ainda não conseguimos realizar dada a imperatividade de equipamentos e do fornecimento de óculos de grau. Sempre tentamos levar as especialidades mais necessárias e resolutivas, como ginecologia e obstetrícia, pediatria, medicina da família e comunidade e psiquiatria. Essas especialidades têm colaborado com a vazão na fila do SUS, no entanto, a demanda por exames de imagem complexos e laboratoriais ainda é um ponto frágil que não conseguimos suprir”.
Para concluir, ele evidencia ações particulares como a do dr. Erik Jennings, “que tem facilitado o translado de pacientes com o avião anfíbio. De fato, nesta última expedição, enviamos uma criança com apendicite para a cidade nesse avião. O homem é minha inspiração tanto na neurocirurgia quanto promoção de saúde”.
Como médico voluntário e Coordenador do projeto da Fundação Dieter Morszeck (instituição sem fins lucrativos com sede em Colônia, na Alemanha, que trabalha no mundo inteiro em prol do bem comum com vigor, dedicação, criatividade e perseverança), doutor Erik Jennings Simões, voa para assistenciar de forma plena e digna comunidades de áreas remotas da Amazônia. O projeto visa a realizar resgates e atendimento médico a pacientes em áreas de difícil acesso.
Profissionais como o Dr. Érik Jennings e como o futuro médico Josué Andrade, com tal sensibilidade para com a dor do outro, é que fazem a diferença entre a vida e a morte do povo amazônida, principalmente, das comunidades ribeirinhas e das aldeias.
O sucateamento da saúde afeta ainda mais os povos indígenas, são eles os mais fragilizados. Por isso, vale a pena frisar que cada cidadão brasileiro deve receber atendimento digno para salvaguardar a sua saúde dentro ou fora do seu território. O Estado deve garantir tal direito previsto na Constituição. Exemplos positivos como as parcerias entre Governo e ONGs, como foi mencionado no texto, são provas de que são ações que funcionam e que podem garantir uma esperança a mais para aqueles que mais necessitam.