O ano de 2023 fechou com uma notícia que surpreendeu a comunidade santarena: a pavimentação da primeira etapa da estrada de acesso à praia de Ponta de Pedras, em Santarém, no oeste do Pará. O comunicado foi feito pelo prefeito Nélio Aguiar por meio de uma rede social. A obra está orçada no valor de R$ 11 milhões e 490 mil já empenhados no Ministério do Desenvolvimento Regional, após a finalização do cadastro do projeto.
Com o progresso chegando para uma população que há anos clama pela melhora de condições da estrada e que investe por conta própria na locação de máquinas para manter aquele acesso trafegável, espera-se que a obra seja iniciada e concluída no prazo estipulado. Há também uma atenção especial dada que os comunitários de Ponta de Pedras e das demais comunidades à margem da estrada, a respeito do projeto: possíveis impactos que a pavimentação pode trazer para os moradores das vilas da região.
O Tapajós de Fato conversou com o comunitário Anivaldo Belém da Silva, que disse que o asfaltamento da estrada é a realização de “um sonho que a gente busca, em que a gente possa ter um acesso de qualidade tanto para comunidade quanto pro nosso visitante, turista, pessoas que frequentam aquela praia”. Seu Anivaldo comenta que sabe que a facilidade de acesso pode trazer transtornos, mas, para ele, o pior chegou antes do asfalto: “O pior já está lá dentro, não é só de Ponta de Pedras, de todas as comunidades, chegou primeiro, que é a droga, né? Então, ela se espalhou. Ela contaminou. Então, era o que poderia a gente temer”.
Anivaldo está crente de que o serviço de transporte coletivo passará por mudanças positivas: “sobre o ônibus também, com certeza, isso vai melhorar porque hoje a empresa que trabalha [na linha Santarém-Ponta de Pedras] alega muito a estrada. Nós só temos uma linha de ônibus na comunidade uma vez por semana. Com a estrada, nós estamos cobrando da prefeitura uma linha com mais dias e [a]os finais de semana também para fazer essa trafegabilidade de levar os turistas no final de semana”, o que traria benefícios para o comércio local.
O Tapajós de Fato também conversou com Sheila Sousa de Oliveira, atual presidente da Federação das Associações de Moradores de Comunidades e Entidades do Assentamento Agroextrativista Eixo Forte (FAMCEEF), que cobra mais participação da população em geral nas discussões a respeito desses possíveis impactos, e revela que houve uma certa centralização das discussões em um assunto de interesse público:
“O grande problema é que o poder público não nos chamou para a discussão. Como sempre, soubemos da notícia no dia 31 de dezembro”. Segundo ela, “o presidente de Ponta de Pedras e o presidente do Nova União estavam sabendo. Recebi informações que estavam fazendo um abaixo assinado de apoio para que a estrada de Ponta de Pedras fosse asfaltada”.
A líder comunitária cobra que tudo seja feito consoante a legislação e respeitando o livre direito de acesso à informação dos comunitários. “Estamos dentro de um assentamento agroextrativista, PAE Eixo Forte, Incra, APA ALTER DO CHÃO, e não somos respeitados. Precisamos saber se o Incra participou dessa discussão, pois acho que tem que haver anuência do Incra e [da] Semma para qualquer construção. É o que entendo: só precisa ser respeitada a lei 169”. Ela disse que faltou uma “consulta livre, prévia e informada”.
Sheila falou ainda que é motivo de comemoração qualquer melhoria nas condições da estrada porque muitos dependem dela para que clientes façam a economia da área alavancar e para que produtos da agricultura da região sejam escoados, mas destaca outras demandas da região. “Para alguns comunitários, a chegada do asfalto será bom para eles. Será bom, mas porque [o poder público] não investe recursos em abastecimento de água, contratação de professores e expansão de energia para esse assentamento que está abandonado pelo próprio pai da criança, [o] Incra? ...e sozinhos não temos forças contra o poder público. Não somente isso. A saúde está cada vez mais precária. Vejo que o asfalto vai mudar muita coisa, inclusive os acidentes. Pena que os benefícios são para uns e outros não. A recuperação de ramais nas comunidades seria importante. Pena que pra conseguir isso a briga é grande”, conclui.
Para que o progresso aconteça de forma efetiva é necessário o olhar amplificado sobre questões sensíveis à comunidade.
O economista Felipe Bandeira, professor universitário, doutor em Desenvolvimento Regional pela Unicamp, avalia que é importantíssimo o asfaltamento, pois tal pavimentação representa uma conquista pela qual a população daquela área anseia há tempos, podendo potencializar o turismo para a região e ser um corredor de escoamento de produtos dos trabalhadores dali. Segundo ele, “pode ser inclusive um caminho para pensar uma forma de desenvolvimento mais sustentável, pois o desenvolvimento regional deve ser pensado em conjunto com a comunidade para produzir oportunidades de emprego, renda, melhoria de infraestrutura, etc, sem aprofundar desigualdades sociais”.
Doutor Felipe se preocupa muito com a possibilidade de a pavimentação ser excludente; por isso, disse que “Em Ponta de Pedras, o asfaltamento é bem-vindo, desde que identifique e crie mecanismos para fazer a gestão de conflitos oriundos da pavimentação, como evitar apropriação de terras e desmatamento etc. Nesse sentido, apenas o asfaltamento é insuficiente se este não vier acompanhado de um conjunto de outras políticas públicas que produzam um desenvolvimento efetivamente sustentável. E isso deve vir com a participação popular, sobretudo dos moradores da comunidade”.
Com a pavimentação, a valorização de terrenos à margem da estrada de Ponta de Pedras e nas comunidades cujo acesso é feito por meio da via é inevitável. Devido a isso, o economista destaca “os perigos de especulação e apropriação indevida das áreas próximas à rodovia. Nesse sentido, deve-se pontuar muito bem esse plano de gestão territorial em conjunto com [o] asfaltamento”.
Um dos riscos é a própria elitização das áreas próximas à praia e o consequente aumento do custo de vida em Ponta de Pedras, por exemplo, o que afastaria antigos moradores, famílias cujas raízes e memórias estão há gerações às margens do Tapajós. “Nesse sentido, para afastar a possibilidade de gentrificação*, como ocorreu em Alter do Chão, é preciso desde já ajustar os termos do asfaltamento, com peso nas políticas de ordenamento territorial. Há, sim, uma possibilidade de se aumentar o processo de especulação imobiliária e a explosão de loteamentos ao longo da rodovia. No entanto, esses são fenômenos que devem ser encarados desde agora pelo poder público, independente do asfaltamento da rodovia. Obviamente que o asfaltamento acelera a necessidade de maior intervenção do poder público, fato que deve ser observado pela participação popular, Ministério Público e demais órgãos competentes”.
Felipe Bandeira reforça que os impactos negativos podem ser minimizados: “A participação da comunidade e a criação de pactos que levem em consideração o desenvolvimento sustentável é o melhor caminho para associar as potencialidades de desenvolvimento da região com melhoria da qualidade de vida dos moradores com respeito à natureza (...) algo tão importante para a vida dos moradores e [para o] equilíbrio ambiental da região”.
O economista conclui dizendo que o que demanda atenção é a forma como tem sido conduzido o processo de asfaltamento desde o projeto. É preciso ver “se essa pavimentação está sendo centralizada, se ela está excluindo a participação popular, se está prescindindo de instrumentos para fazer a gestão de áreas que são próximas à estrada. Eu acho que tudo isso tem que estar bem estabelecido no projeto de asfaltamento”.
Uma reunião entre a comunidade e o prefeito para tratar do asfaltamento da estrada está prevista para o próximo dia 27, às 15h.
Pelo compromisso com a população, o Tapajós de Fato continuará apurando novos fatos em torno do tema.
* gentrificação é um processo caracterizado pela valorização de determinada área urbana. Essa valorização ocorre por meio de ações diversas, como reformas urbanas, que implicam o aumento do custo de vida na região.