O mês de março é marcado por muitos elogios e mimos às mulheres, que se tornam protagonistas nos veículos comunicação por meio de peças publicitárias. Nas quais, elas aparecem num cenário ideal, em que todos os seus direitos são respeitados. Mas a realidade por trás desse mundo encantado pintado nos holofotes da mídia é outra. Muitas mulheres nortistas – principalmente, as ribeirinhas, quilombolas e indígenas – sofrem com o sucateamento, com a superlotação ou com a total desassistência do sistema público de saúde na Amazônia.
O Tapajós de Fato já abordou tal realidade em outras matérias, como foi o caso das mortes de 7 mulheres por conta de câncer no colo do útero só na região do Arapixuna, localizada no Pae Lago Grande, em Santarém-PA. Neste mês da mulher, o TDF quer denunciar o quanto as cidadãs amazônicas têm sido negligenciadas, pois o acesso à saúde não é um direito que as têm alcançado universalmente. Situação mais delicada ainda é daquelas que estão em sua comunidade ou em seu território, onde atendimento preventivo é mais difícil ainda para chegar.
Recentemente, um grupo de integrantes da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais (AMTR) de Santarém realizaram uma intervenção simbólica solicitando providências a respeito de ações preventivas que visem a melhorias das condições de saúde da mulher. Keyse Costa, uma das líderes do movimento, falou ao Tapajós de Fato a respeito do que motivou o ato: “A nossa motivação é para cobrar órgãos fiscalizadores. É pressionar para que as mulheres do campesinato tenham acesso ao direito à saúde sem precisarem estar expostas a situações desagradáveis”.
Ela comentou a respeito das principais particularidades do atendimento à saúde da mulher da zona rural: “A atenção à mulher na zona rural é muito difícil, a distância é o principal fator limitante. A logística até esses lugares é muito complexa, os atendimentos que chegam até lá são básicos. Elas não têm acesso a atendimentos mais complexos que precisam de exames mais específicos, pois, para ter um atendimento desses, o local primeiro precisa de uma estrutura boa para funcionar. Então, para fazer exames mais detalhados elas precisam vir até Santarém”, o que pode não ser tão simples, uma vez que ela pode não ter onde ficar hospedada.
Outras cidades da região têm casa de apoio para acolher quem está em Santarém para acompanhamento médico. Segundo Keyse, esse local de acolhimento necessário não há para a mulher ribeirinha. Assim, “muitas [que precisam da consulta com especialista ou de exame mais detalhado] acabam nem vindo por falta de recursos para hospedagem, alimentação e locomoção nos dias que precisam ficar na cidade. Uma situação que a mulher que está inserida em um contexto urbano não precisa se preocupar. Então, a atenção à saúde da mulher rural vai além dos desafios comuns, são detalhes que precisam de uma atenção diferenciada”.
Keyse conclui enfatizando que a saúde da mulher da zona rural é pauta constante das reuniões da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais: “Sempre que a AMTR vai até o território, debatemos muito assuntos relacionados à saúde da mulher rural, que é um fator determinante para a permanência dessa mulher no território, pois uma mulher que está com a saúde fragilizada não consegue dar continuidade a seu trabalho no campo e acaba precisando ficar em casa de parentes ou conhecidos aguardando atendimento em Santarém”, o que compromete o bem-estar e a privacidade dela e, dependendo do tempo necessário para acompanhamento ou tratamento, a privacidade de quem a acolhe.
Apesar de muitas cidades na região norte terem universidades com cursos da área de saúde, essas instituições permanecem muito tempo dentro dos próprios muros, sem dar o devido retorno à sociedade que paga pelo funcionamento desses lugares.
A enfermeira Veridiana Barreto do Nascimento, Doutora em ciências, professora universitária e cidadã preocupada com a saúde da mulher, conversou com o Tapajós de Fato sobre o atendimento público dado às mulheres amazônicas. Por muito tempo, a enfermeira atuou na região de rios e em assentamentos quilombolas e falou sobre a vulnerabilidade da saúde da mulher: “dentro do contexto da saúde, a gente trabalha com o referencial de vulnerabilidade. Então, a gente sempre descreve a vulnerabilidade em três dimensões: a vulnerabilidade individual, a vulnerabilidade social e a programática. E o que a gente percebe dentro no nosso contexto, no sentido região amazônica, é, de fato, que essas três dimensões estão interligadas, por exemplo, a vulnerabilidade individual [é] aquela situação em que eu estou exposta ao risco pelo fato de eu não ter uma escolaridade que seja o suficiente para eu compreender uma orientação de saúde. Daí, porque que eu não tenho escolaridade está muitas das vezes relacionada ao contexto social ou até mesmo dentro do contexto de dimensão programática no sentido educacional porque muitas das comunidades, muitos territórios, não têm escola dentro das comunidades. Então, faz com que de fato, eu só consiga levar a minha parte de ensino até o ensino fundamental, por exemplo, não consigo passar para o médio porque na minha comunidade, nas proximidades, não tem ensino médio. E aí, dentro do contexto de vulnerabilidade programática da saúde, que é essa dimensão, ela é afetada pela ausência dos serviços de saúde dentro do território. Então, a gente, sempre que descreve algo, pensa dentro dessas dimensões de vulnerabilidade (...) e isso faz com que as nossas reflexões sejam intermitentes e com contexto histórico. Tem comunidades em que existem lutas de vinte, trinta anos, até mais, lutando para ter um sistema educacional dentro da comunidade, no sentido de ter uma escola, lutando para ter uma unidade básica de saúde dentro da comunidade porque também não tem”, desabafa.
A docente destacou as comunidades ribeirinhas como áreas mais carentes de atendimento. Para ela esses lugares “infelizmente, são comunidades que recebem uma assistência, muitas das vezes, em outro território, em outra comunidade, na qual elas precisam ir de canoa, ou ir de rabeta, ou, até mesmo, de barco ou vir para a cidade para receber algum tipo de assistência. E aí, essa assistência fica pautada no período de gravidez dessa mulher, ao período que essa mulher precisa fazer as consultas de pré-natal. Fora desse período, geralmente, ela volta para as primeiras vacinas da criança e ela não volta mais pelas dificuldades de acesso ao serviço de saúde, [Há] ausência dos serviços de saúde nas comunidades”.
Ela ressalta ainda a saúde como um direito universal da mulher: “De forma geral, não só no contexto amazônico, mas a gente pensa no contexto nacional, todas as mulheres deveriam contar com um serviço de promoção/prevenção da saúde, onde essa promoção seria pautar em uma atividade educativa que incentivasse essa mulher ao autocuidado, por exemplo; atividade de prevenção nesse contexto [seria] a vacinação, a coleta do exame ginecológico, a questão da orientação do autoexame das mamas para que essa mulher pudesse receber uma assistência de qualidade e também para que essa mulher pudesse manter a sua saúde (...) e, lógico que, quando necessário, que essa mulher contasse com uma assistência pautada no diagnóstico, no tratamento adequado de qualquer patologia que essa mulher estivesse sendo acometida (...). Então, que, de fato, essa mulher recebesse assistência e contasse com o serviço de saúde dentro do território”.
Veridiana Barreto destaca ainda que a mulher ribeirinha é a responsável pela saúde da família, pois “ela detém o conhecimento do uso dos recursos naturais que ela tem dentro de uma comunidade e ela vai tratar da forma com o que ela tem disponível. Então, dentro desse contexto, o que se faz necessário é a implantação de uma unidade básica de saúde dentro das comunidades que trabalhassem o eixo de prevenção e promoção da saúde (...) para que a gente tivesse uma mulher com saúde e, consequentemente, com a melhora da sua qualidade de vida”, conclui.
Lideranças comunitárias rurais e lideranças indígenas sempre se queixam do abandono que sofrem no que diz respeito a ações de prevenção, nesse caso, à falta dessas ações. Essa ausência gera consequências devastadoras, uma vez que muitas doenças silenciosas se gravam por conta da falta da prevenção e quando são diagnosticadas, já não há o que fazer, quando o estado da paciente já se tornou irreversível.
A esse respeito, o TDF conversou com a Dra. Milena Gomes – ginecologista e obstetra Especialista em Patologias do trato genital inferior e Colposcopia, pós-graduada em sexologia e Rejuvenescimento Íntimo – a qual considera que a mulher amazônica, principalmente, a que está longe da zona urbana tem mais vulnerabilidades no que diz respeito a infecções sexualmente transmissíveis e a outras doenças do aparelho reprodutor. Segundo ela, isso se deve a fatores como “baixo nível de escolaridade, analfabetismo e pouco acesso às informações, início precoce da vida sexual, vergonha em realizar exames íntimos e, até mesmo, por impedimento do conjugue, difícil acesso à saúde básica, exames de prevenção, orientação profissional e atendimento médico, dificuldade devido à distância dos grandes centros, baixo poder aquisitivo”.
Unir o tradicional ao convencional pela saúde da mulher ribeirinha, quilombola e indígena
O atendimento básico de saúde precisa chegar ao interior. A esse respeito, falou ao Tapajós de Fato a doutora Milena Pagel, médica generalista, que também atende em unidades básicas fora da zona urbana e falou a respeito do que diferencia o atendimento às mulheres de fora da zona urbana na Amazônia: “já trabalhei na zona urbana periférica, região de rios e planalto. Os atendimentos em regiões fora da zona urbana são de pessoas que moram longe da unidade de saúde e percorrem longas distâncias. Devido a isso, há uma urgência de várias demandas em saúde que precisam ser resolvidas assim que conseguem atendimentos. São muitas demandas em uma consulta”.
Ela comentou o fato de muitas amazônidas ribeirinhas serem acometidas por câncer no útero e citou ações aplicadas, atualmente, na região Norte: “como medida de saúde pública, implantou-se o exame de colposcopia oncótica, o famoso PCCU, para mulheres ou homens trans a partir de 25 anos e, em média, a coleta deve ser feita de 3 em 3 anos. O diagnóstico e tratamento precoce diminui a mortalidade dessa população. Infelizmente, devido a longas distâncias do serviço de saúde, muitas mulheres ficam sem acesso à coleta do PCCU por muitos anos além do recomendado. Ainda pior são aquelas que nunca tiveram acesso a um primeiro exame. Essa é uma das principais carências”.
Como médica em um território indígena, o Borari, doutora Milena destacou a comunhão entre o tradicional (medicina caseira) e a medicina convencional: “Devemos sempre respeitar a individualidade do paciente, [da] família e [da] comunidade. Em minha formação, aprendemos que muitas substâncias extraídas de chás são benéficas para alguns sintomas. O importante é saber o que o paciente espera de sua saúde, o quanto ele está disposto a fazer os tratamentos e a tentar diminuir riscos de interações de substâncias. Sempre estudar os costumes e tradições da comunidade em que o médico vai trabalhar é algo essencial”.
A doutora Milena Pagell ressalta ainda poder da informação como ferramenta de empoderamento feminino. Segundo a médica, “o acesso a informações sobre saúde é essencial. Um exemplo é a informação sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Dar o poder de escolherem métodos contraceptivos, o acesso a eles e o planejamento familiar de forma eficaz aumenta a autonomia das mulheres sobre suas vidas e pode melhorar a qualidade de vida”, conclui.