Historicamente a maternidade tem sido idealizada como o papel principal da mulher na sociedade, muitas vezes ignorando suas aspirações individuais e profissionais a um segundo plano. As mulheres têm lutado para redefinir essa narrativa, ao longo dos anos, exigindo reconhecimento e políticas públicas que as possibilitem conciliar suas responsabilidades maternas com suas atividades profissionais, de forma eficaz.
Indo além, para as mulheres mães que também são ativistas de causas sociais, os desafios são diversos e, transversalmente, interligados. Em primeiro lugar, há a questão da sobrecarga de trabalho, pois muitas vezes essas mulheres precisam equilibrar suas responsabilidades familiares com o ativismo, o que pode ser fisicamente e emocionalmente exaustivo, faltam políticas públicas e estruturas de apoio que facilitem a conciliação entre maternidade e trabalho, como licença-maternidade estendida, creches acessíveis, horários flexíveis e etc. Outro desafio é a resistência cultural e social à ideia de que as mulheres podem ser mães e também agentes de mudança social.
Muitas vezes, as mulheres são julgadas por não se conformarem com o papel tradicional de mãe e por dedicarem tempo e energia ao ativismo, enfrentando críticas e estereótipos negativos.
E quando essa mãe é uma mulher indígena? Quando uma mulher indígena é mãe e também militante os desafios podem se intensificar devido às questões específicas enfrentadas pelas aldeias indígenas no país. As mulheres indígenas frequentemente enfrentam múltiplas formas de discriminação e marginalização, tanto dentro de suas próprias comunidades quanto na sociedade em geral.
Nessa reportagem, a série Maternidade e Militância vem destacar a luta das mulheres indígenas - das ancestrais, das matriarcas, das guerreiras que armadas de coragem e força direcionam a luta da retomada e da resistência indígena no Baixo Tapajós - contando a história de Margareth Maytapu, mulher indígena, mãe, educadora e liderança comunitária, hoje a frente da coordenação do Conselho Indigena Tapajós-Arapiuns (CITA).
Em conversa com o Tapajós de Fato, Margareth fala da sua caminhada - dos desafios, dos medos, dos anseios, mas também das vitórias, que marcam a sua história pessoal e coletiva.
A construção do ser social-político feminino em Margareth
Margareth Pedroso dos Santos é uma mulher indígena, da etnia Maytapu, da Aldeia de Pinhel, município de Aveiro, que iniciou sua militância ainda na adolescência.
“Essa militância se iniciou lá, 23 anos atrás. Então, na época que iniciou o movimento indígena aqui no Baixo Tapajós, eu era jovem né, ainda criança na verdade, eu tinha uns 10 anos. E então começou com eu vendo né, a minha mãe nas reuniões, nos encontros que tínhamos para falar sobre as nossas dificuldades, falar da nossa realidade né. Então foi a partir daí que eu comecei a ter um outro olhar[...] eu queria entender como era aquilo tudo, como era aquela luta, que tinha muitas pessoas, então queria entender o que eles estavam fazendo”.
A líder indígena conta que no início sua motivação para a militância foi a sua existência, a realidade do seu povo e da sua comunidade. Foi a curiosidade por entender a luta dos mais velhos, principalmente a da sua mãe, que impulsionou seus primeiros passos no movimento. “Então, eu fui muito na questão da curiosidade mesmo e também para acompanhar a minha mãe, né. Mas a partir dos meus 15 anos eu começo a ter uma outra visão, pelo fato de estar [morar] numa área de conservação, porém, muito cobiçada pela questão madeireira, pela questão do desmatamento, e aí eu inicio essa caminhada. Aos meus 18 anos eu faço o magistério indígena, que foi também um dos meus desafios, por ser mulher e também sair da minha aldeia para passar os dias em Santarém, na cidade”.
Sobre esse marco da sua vida, a saída da aldeia e a adaptação a vida na cidade, Margareth enfatiza as dificuldades enfrentadas como um período de muita luta pessoal. A realidade dessa jovem mulher, na época, é, ainda hoje, a realidade de muitos jovens.
“Estar na aldeia e morar na cidade, não é nada fácil…sendo mulher, jovem e saíndo da aldeia né… não foi fácil enfrentar tudo isso, porque a gente sabe que todos os desafios eles vêm em sentido de colocar para baixo, pelo fato de eu ser mulher e não ter minha autonomia (na época)”.
Mas apesar das dificuldades Margareth marca a sua primeira vitória pessoal e coletiva, sua formação. Ao fim da sua graduação ela retorna para o seu território para dar início a sua caminhada como liderança comunitária.
O fortalecimento da militância e a maternidade
A cronologia dos fatos e acontecimentos não é o ponto focal ao se contar a história de Margareth. Uma história que toca pela sua força (característica feminina), pela sua resiliência e pelo seu valor coletivo. Margareth, hoje à frente da coordenação do CITA, organização que representa 121 Aldeias, 14 povos e 18 territórios de três municípios (Santarém, Belterra e Aveiro), vem de uma construção coletiva que transcende o pessoal.
“Em 2008 eu concluí o magistério indígena e voltei para Pinhel para trabalhar na escola, na escola indígena a qual nós, também com muito esforço, conseguimos e construímos com ajuda de todos os indígenas né, da nossa organização. E aí eu entro para mais um desafio, que foi em 2014 ser presidente da associação indígena, aí também foi uma das minhas ações feitas na minha Aldeia, né. Ser presidente de uma associação já é um desafio, porque por mais que você conheça a realidade, mas você não sabe como é lidar com tudo isso né. Então foram quatro anos à frente da associação, graças a Deus que nós tivemos muito apoio, e sequência disso eu venho também para coordenar um grupo de mulheres, que hoje nós temos o grupo de mulheres do coco aqui de Pinhel. E então nessa conjuntura toda que nós passamos de organização, de discriminação também dos nossos próprios parentes contra nós, então foi desafiador tudo isso”.
Uma jornada marcada por desafios, resiliência e valor coletivo, sua trajetória é um testemunho da capacidade feminina e da determinação de uma comunidade em busca de seus direitos e reconhecimento. Sua liderança é fruto de uma construção coletiva que vai além do pessoal, envolvendo a colaboração e o esforço de toda uma comunidade. Ao longo de sua jornada, Margareth enfrentou desafios como a organização comunitária, a discriminação e até mesmo a resistência de seus próprios parentes. Longe de querer romantizar todos esses enfrentamentos, no entanto, é necessário pautar que sua resiliência e determinação a levaram a superar esses obstáculos, deixando um legado de força e inspiração para as gerações futuras.
Ela conta como foi se tornar mãe durante esse processo:
“Eu ganhei de presente, né uma filha, hoje ela está já com 15 anos… era, era muito, muito preocupante quando a gente saía para defender o nosso povo e ter que deixar a minha pequena, porque era muito perigoso, principalmente, a gente atravessar rios. Assim, viver horas e horas em lugares que as crianças não podiam estar, então isso para mim me fez ter um outro olhar né, o olhar do que se eu tava fazendo tudo aquilo já não era por mim, mas sim por um ser que eu estou ali já criando”.
A participação ativa de mães como Margareth na luta indígena, bem como nos demais espaços, contribui para uma representação mais equitativa dentro dos movimentos e organizações indígenas. Isso é fundamental para garantir que as vozes e preocupações das mulheres indígenas que maternam sejam ouvidas e consideradas nas tomadas de decisão e na construção da luta e dos espaços de militância.
“Minha filha, hoje, já me ajuda bastante também, conhece um pouco da nossa realidade, sabe que a nossa luta ela não é em vão né, sempre a gente tem esses desafios. E assim, hoje estar na frente de uma organização que eu vejo que, hoje, tem muitos olhares não é fácil, até porque muitas das vezes querem nos calar né; querem nos intimidar porque sabem que se a gente se calar as coisas não vão andar”.
As mães trazem perspectivas únicas e experiências diversas para a luta. Suas preocupações podem se estender para além das questões territoriais e ambientais, incluindo também questões de gênero, saúde reprodutiva, educação e empoderamento feminino.
“Viver para o movimento não é fácil, você se torna uma pessoa visível né, as pessoas sabem que você tá ali para defender o seu povo e querem te calar de qualquer jeito, mas a gente não pode dar o braço a torcer para tudo isso né. [...] dentro desse contexto todo, analisando hoje, eu vejo que a Margarete de hoje não é aquela Margarete de 30 anos atrás, porque hoje eu já tenho segurança das minhas ideias, das coisas que eu faço, das coisas que eu falo e também hoje eu já penso mais né, eu já tenho um outro olhar, porque tudo que eu tô fazendo hoje vai ter resultado para o futuro, para a geração que tá vindo. Então para mim hoje esse olhar de dizer que nós lutamos, nós persistimos para nós existir. A Margarete de hoje ela tem esse conhecimento e sabe que na vida nós temos que viver aprendendo sempre né, nós não podemos nos abaixar para homem nenhum, nós não devemos ser diminuídas por qualquer coisa. Então eu vejo que basta você ter coragem e enfrentar essas dificuldades”.
A força do exemplo, da cooperação e da ancestralidade
A história de Margareth é um exemplo do poder da união e da solidariedade em busca da justiça e da igualdade. Sua liderança e dedicação são um farol de esperança para sua comunidade e para todos aqueles que lutam por um mundo mais justo e inclusivo.
“Eu tenho muita, muita ciência de que se hoje eu estou nessa luta eu devo muito a minha família em especial minha mãe, que é uma mulher guerreira, uma mulher que mostrou que nós precisamos lutar sempre, não nos deixar abalar por coisas pequenas e sempre nos incentivou a querer mais, não para si, mas sim pelo coletivo”.