Carregar nas veias o sangue de ser filho e filha de uma comunidade ou aldeia é uma herança ancestral. Ser nativo de um território é crescer ouvindo as histórias contadas pelos avós, participando dos puxiruns comunitários, das festas religiosas e sociais, aprender desde cedo a pescar, caçar, trabalhar no roçado, conhecer as estações da natureza e tantas outras atividades. O território é lar, é vida.
Infelizmente, esses "lares" são vistos pelos governos e por grandes empreendimentos como negócios. Políticas públicas no campo nunca foram prioridade dos nossos governantes, estrategicamente para que haja esvaziamento das comunidades e aldeias para facilitar a entrada de projetos de destruição e morte.
Apesar de tantas riquezas culturais e ancestrais nas comunidades, a população vive à margem do descaso do poder público, sem acesso à educação de qualidade, por exemplo. Na maioria dos locais as escolas vão até o ensino fundamental, e em outros não existem escolas. O acesso à saúde é desumano, por falta de remédios e profissionais de saúde para atender a demanda, e em muitas regiões nem posto de saúde tem. Não há investimento na agricultura familiar, de onde muitos tiram seu sustento e renda. Muitas regiões não são contempladas com energia elétrica 24 horas. Além da falta de acesso ao saneamento básico e à água potável, falta de emprego no campo e outros direitos que são violados diariamente.
Esses fatores levam a uma problemática chamada êxodo rural, a saída da população de seus territórios para irem para as cidades, impactando principalmente os jovens. Eles deixam suas comunidades e famílias em busca de melhores condições de vida. Muitos, mesmo diante de tantos desafios, conseguem trabalhar e estudar, enquanto outros, por vários motivos, acabam se entregando ao mundo das drogas e do crime.
Relatos de jovens que tiveram que deixar seus territórios para irem em busca de melhores condições de vida na cidade
“Sou Karine dos Santos de Souza, mulher jovem quilombola, do Quilombo Boa Vista, Alto Trombetas, município de Oriximiná, onde morei até aos 17 anos e por motivos de falta de oportunidade de estudo, tive que deixar minha comunidade, pois lá só tem turma até a quarta série do Ensino Fundamental, e aí depois a gente começa a estudar em Porto Trombetas, em uma escola que é da Mineração Rio do Norte, em um projeto na vila, uma vivência desafiadora, começando pelo deslocamento até a escola, a gente tinha que acordar às quatro e meia da manhã para pegar o barco e ir para Porto Trombetas, e outro desafio era o racismo que a gente enfrentava na escola, éramos excluídos o tempo todo. Na escola, não temos acesso à educação sexual, isso é uma problemática, pois há um alto índice de gravidez na adolescência, e as meninas acabam desistindo de estudar. E quanto ao Ensino Médio, só tem em uma comunidade, com salas sobrecarregadas de alunos, sendo assim muitos optam parar de estudar e outros optam pelo Exame Nacional para certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) para terminar mais rápido o ensino médio e trabalhar nas empresas terceirizadas que prestam serviços para Mineração”.
Segundo a jovem, a mesma teve que sair do seu território aos 17 anos e ir para Santarém, em busca de oportunidade de estudos, passou na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), e se formou em Ciências Agrárias, “sou a primeira da minha família a entrar na universidade. Passei por momentos difíceis sem uma rede de apoio em Santarém, pois minha família mora no Quilombo. Aqui na cidade se você não tiver dinheiro você não come, aqui você paga aluguel, internet, transporte, energia tudo é muito caro, na comunidade é diferente, ainda existe o espírito de troca, de solidariedade, você não passa fome, você vai na casa da avó, da tia e alí te oferecem o que comer, deixar o território é uma decisão muito difícil, mas infelizmente às vezes não temos outra opção”, finaliza Karine.
Outro jovem que também precisou deixar seu território foi Jackson Tupinambá, da aldeia São Francisco, em Santarém, Baixo Tapajós.
“Nasci e fui criado naquele solo sagrado, onde minhas raízes se fazem presentes desde minha ancestralidade. Vim para Santarém no final do ano de 2021, para cuidar de minha mãe que estava doente, aí depois passei na universidade e acabei ficando, hoje, estou cursando o segundo semestre em Licenciatura em História, na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Tive que deixar o meu território para vir estudar em Santarém, uma decisão difícil, mas infelizmente a gente não tem escolha, mas mesmo estando aqui em Santarém eu sigo conectado com as lutas do meu povo, pois o território pra mim é muito sagrado, é como se fosse a casa dos meus pais, que a qualquer momento eu posso voltar, eu sei que lá eu vou ser acolhido”.
Para ele a defesa do território é super importante, “porque ele nos sustenta, não só espiritualmente, mas lá a gente tem o nosso lugar para plantar e depois colher. O território é algo sagrado demais pra gente, principalmente enquanto povos indígenas, por isso temos que defendê-lo do agronegócio, das invasões madeireiras, pois eles querem destruir e acabar com a vida de quem habita lá”.
Os territórios são plurais e apesar das narrativas terem algo em comum, entender a realidade de jovens de diversas regiões faz com que entendamos a importância do fortalecimento das lutas por efetivação e equidade de políticas públicas, o Tapajós de Fato Também ouviu o jovem Elton Arapiun, indígena, da comunidade Igapó-Açu, rio Arapiuns, no PAE Lago Grande, em Santarém.
“Meus pais são agricultores, também sou agricultor, é herança que vai passando de geração para geração, mas infelizmente essa classe não é valorizada e reconhecida. Estudei até quarta série na minha comunidade, e depois comecei a estudar em uma outra comunidade, pois lá só tem a quarta série, sofremos diversos desafios, infelizmente a educação no campo não é prioridade dos nossos governantes. Assim como saúde também, na minha comunidade não tem posto de saúde, temos que ir para outra comunidade e quando a gente chega lá, não tem remédio. Quando alguém adoece com alguma coisa grave têm que ir para a cidade, que não é perto”.
Outro desafio apontado pelo jovem indígena é a falta de emprego e a não valorização dos produtos oriundos da agricultura familiar, “como falei somos agricultores e nossa renda vem disso, só que não tem políticas de incentivo para agricultura”.
O jovem ressalta que nas proximidades de sua comunidade está localizado um porto madeireiro, mas as pessoas que trabalham lá, 95% são de outras cidades e outros estados, não são das comunidades.
“Com tudo isso, sendo o filho mais velho tenho que ajudar minha família, tive que vir para Santarém para estudar e trabalhar, não tive outra opção, mas mesmo assim não me distanciei das lutas por melhorias para o nosso território, para que as futuras gerações possam ter acesso a essas políticas públicas, pois se elas já estivessem sendo efetivadas em nossas comunidades a gente não ia precisar sair de lá”, finaliza Elton.
Os três jovens afirmam que pretendem voltar um dia para seus lugares e trabalhar em suas áreas. As histórias dos mesmos possuem familiaridade, todos, assim como muitos jovens não tem a opção de ficar. A precariedade e a não efetivação dos direitos garantidos por lei levam a esses fatores problemáticos e preocupantes para as comunidades. De acordo com dados do Banco Mundial, o percentual de habitantes do país que vivem no campo caiu 33,8% de 2000 a 2022.
Como é a vida de quem decide ficar na comunidade?
São diversos os desafios enfrentados tanto para quem não fica quanto para quem fica, e na Amazônia essas dificuldades se intensificam, como relata o jovem Benezildo Costa, da comunidade de São Pedro, na Resex Tapajós Arapiuns, em Santarém.
“Nasci no ventre da floresta, me criei na colônia trabalhando com meus pais no roçado, na produção de farinha de mandioca, na pescaria, na plantação e colheita de frutos do extrativismo. Minha infância e adolescência é marcada por boas lembranças enquanto morador de uma comunidade, mas ao mesmo tempo carrego lembranças cheias de desafios no meu tempo de escola. Minha vivência se deu a partir da vida em comunidade, participando da igreja, dos movimentos de jovens e na rádio comunitária, hoje Rádio Floresta. Hoje sou uma liderança em meu território. Escolhi ficar por causa da minha família, principalmente por causa dos meus pais, fiquei para cuidar deles, foi uma escolha muito difícil porque a gente tem muitos sonhos e por mais que seja dolorido, nesse período que fiz essa escolha percebi que é necessário que fique alguém aqui para continuidade nas atividades e na luta em defesa do que é nosso. É importante ficar aqui para não perdermos a nossa cultura, nosso costumes, nossas expressões e poder, pois acredito que se não tiver cultura não tem território, e cada vez mais é importante fortalecer isso”.
Benezildo observa que geralmente quem fica quando todos se vão, são os pais, os mais idosos ou aquelas pessoas que já tem uma família alí na comunidade, e para ele 95% dos que vão para área urbana são os jovens.
“Ficar no território é uma decisão muito corajosa e desafiadora porque tem um certo momento na vida que a gente não enxerga muitas oportunidades em relação ao estudo, se você terminou o ensino médio se você ficar aqui, você para alí, hoje, temos algumas facilidades como a internet, mas mesmo assim ainda é muito desafiador porque não é em todas comunidades que têm acesso a uma internet que seja boa e seja possível para estudar online, por esse e outros motivos muitos jovens optam deixar a comunidade e ir para cidade, é como se fossem arrancados daqui, você tem sua vida arrancada de sua cultura, do seu povo”.
Benezildo finaliza expressando seus sentimentos, “para quem fica, por um lado é muito bom, você tem liberdade, segurança, você vive livre, eu vivo tranquilo aqui, mas para se sentir bem também, você precisa ter uma geração de renda, e isso é um dos principais desafios que a juventude enfrenta ao ficar no território. Pois chega um momento da vida que você precisa comprar roupa, sapato, você precisa realizar alguns sonhos, a questão financeira aqui é muito desafiadora, aqui nossa geração de renda é do extrativismo, da agricultura familiar, da pesca, mas não tem políticas de incentivo que valorize isso. A vida do jovem que fica é uma luta diária, mas é também uma missão nossa de tentar ao máximo fazer parte das discussões políticas para que haja efetivação de políticas de emprego e educação nas nossas bases”.