Diante da mudança climática e do avanço de portos: Há futuro para a pesca artesanal no oeste do Pará?

No Dia Nacional do pescador e da pescadora, mulheres relatam as ameaças e riscos à atividade pesqueira na região do Tapajós.

29/06/2024 às 09h07 Atualizada em 25/10/2024 às 15h09
Por: Tapajós de Fato Fonte: Tapajós de Fato
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FOTO: João Paulo Serra
FOTO: João Paulo Serra

João Paulo Serra (Tapajós de Fato) e Lanna Paula Ramos (Terra de Direitos)

Na Amazônia, a água é um fator estruturante. O fluxo dos rios determina as dinâmicas de mobilidade e molda as relações sociais, com a natureza, espirituais e culturais. Qualquer alteração ambiental, principalmente aquela que afeta a água, impacta diretamente a vida de pescadores e comunidades ribeirinhas. 

 

No Brasil,  segundo dados do Sistema de Registro Geral da Atividade Pesqueira do Ministério da Pesca e Aquicultura, existem 1.035.478 pescadores. Respondendo por mais de 25% do total de pescadores e pescadoras (208.411) , o estado do Pará é o segundo estado do Brasil com a maior quantidade de pessoas ligadas à atividade, ficando atrás apenas do Maranhão que possui 267.626.

Muito antes de ser uma profissão, a pesca é uma prática social e cultural. O conhecimento da pesca artesanal é repassado de geração em geração, assim como os ensinamentos sobre o respeito  aos rios e os ciclos naturais das águas. No entanto, na região do Tapajós, no Oeste do Pará, a sobrevivência destas práticas tradicionais está em risco. 

 

Projetos de impacto aos rios e lagos, como a instalação de portos de escoamento de grãos como soja e milho têm impactado a dinâmica local. Já não se pesca mais como se pescava dez anos atrás. É que conta Ana Cleide Vasconcelos, 61 anos, pescadora, quilombola da comunidade do Arapemã. A comunidade está localizada à margem esquerda do Rio Amazonas, em frente à cidade de Santarém. Ela também é cantora e compositora que se inspira na cultura, luta e beleza do seu povo e de seu território.

 

“A pesca no quilombo, há 10 anos, era muito mais abundante. Acredito que tínhamos muito mais pescado porque a natureza, os rios e igarapés não eram tão mexidos como agora. Os lagos não eram tão invadidos. Dez anos atrás tínhamos muito mais peixe do que agora”, explica.

Arquivo pessoal 

Ampliação de portos 

A diminuição do pescado na região é percebida também por Fraciloudes Gonçalves, pescadora associada à Colônia de Pescadores de Santarém, a Z-20, no Núcleo de Base do Bairro Jaderlândia, área periférica da cidade. Fraciloudes - que também faz parte do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) -  pesca no Lago do Maicá, um território que antes abrigava uma expressiva quantidade de peixes, mas que hoje tem sofrido com a diminuição  devido às alterações causadas no lago, principalmente pela construção de portos de transporte de cargas (em sua maioria, commodities). O alto fluxo de navios e barcaças que atracam às margens do rio dificulta a atividade de pesca artesanal. 

 

“A gente não consegue se alimentar somente do pescado, temos que ter outro tipo de alimentação, como frango, carne e outros. Também temos que procurar outros meios de complementar nossa renda porque o peixe está escasso”, relata a pescadora. 

 

A instalação de empreendimentos portuários no Lago do Maicá causa uma grande discussão no município de Santarém. Ao menos dois portos de escoamento da produção do agronegócio já foram planejados para a área: o porto de combustíveis da Atem’s, instalado e em funcionamento mesmo com indícios de irregularidades no licenciamento ambiental; e o da Embraps, que teve seu licenciamento suspenso pela ausência de consulta aos povos  tradicionais. 

 

A área também é objeto de uma ação judicial envolvendo o Plano Diretor da cidade. Movida pela Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS) e pelo Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA) a ação questiona a transformação  do lago em zona de expansão portuária, sem apresentar estudos ambientais e de viabilidade técnica. A expansão também violou a decisão dos santarenos, manifestada na Conferência Municipal de novembro de 2017. Por isso, a construção de empreendimentos portuários na região do Lago do Maicá foi suspensa por decisão liminar. 


Impactos dos portos 

O Lago do Maicá é apenas um exemplo do que tem ocorrido no oeste do Pará com o avanço de portos do agronegócio. Um estudo da organização de direitos humanos Terra de Direitos apontou que o número de terminais portuários na região do Tapajós teve um crescimento acelerado nos últimos dez anos. Em 2013 eram 20 portos previstos ou operando nos municípios de Santarém, Itaituba e Rurópolis. Já em 2023, foram identificados 41. E assim como nos casos dos portos situados na região do Maicá, foram encontradas falhas e indícios de irregularidades no licenciamento ambiental de todos esses portos, segundo a Terra de Direitos. 

 

O crescimento acelerado dos portos no Tapajós fazem parte de uma iniciativa federal de incentivo à estruturação da cadeia logística de exportação graneleira, o Arco Norte. Uma roda de escoamento que tem como objetivo desembarcar a produção do Centro-oeste pelos rios do Norte até o mercado internacional. De acordo com estudo da Terra de Direitos, é a partir desse incentivo com a aprovação da Lei nº 12.815, a Lei de Portos de 2013, que a região do Tapajós, vê o número de empreendimentos portuários duplicar, trazendo junto a flexibilização do licenciamento a violação de direitos.

 

“Dos 27 portos atualmente em operação na região do Tapajós, somente 5 possuem a documentação ambiental completa exigida em lei. Isso é muito grave do ponto de vista dos direitos socioambientais, já que é o processo de licenciamento que deve garantir possibilidades de mitigação e reparação dos impactos causados por essas obras”, afirma a assessora jurídica da Terra de Direitos, Bruna Balbi.

 

Todos os portos na região, sejam eles de exportação de soja, milho, combustível e até portos para carga e descarga de mercadorias para outros municípios, estão no lado direito da foz do Rio Tapajós ou no Rio Amazonas. Ainda que os lagos em que Ana Cleide pesca estejam na outra margem do Amazonas, ela afirma que sua comunidade tem sentido os danos causados pelos portos e pelo fluxo de balsas e navios dos terminais. “Esse impacto não fica só nas margens de Santarém, mas também pode afetar as comunidades que vivem na margem esquerda do Rio Amazonas. Os navios não chegam no mesmo dia para abastecer e voltar. Com certeza ficará um ou dois, três, aguardando deste lado, jogando sujeira. Isso é inevitável”.

Além da pesca, a água do Rio Amazonas e dos lagos que banham o quilombo Arapemã são utilizadas para lavar roupas, tomar banho, preparar alimentos, entre eles a alimentação destinada para escolas. Ana Cleide explica que os navios e barcaças quando atracam próximo do quilombo, despejam lixos e água suja diretamente no rio. “Sabemos que quando eles [navios] vêm, trazem sujeira para jogar aqui”. O relato evidencia o racismo ambiental que enfrentam as comunidades tradicionais.  

 

O aumento de portos às margens do rio restringe a circulação de pessoas. Em determinadas áreas, os pescadores e pescadoras acabam tendo menos espaço para pescar, atracar embarcações e até para vender o pescado. Francilurdes enxerga esse problema com preocupação: “Para os ribeirinhos e outros pescadores que vêm das várzeas, a vida mudou completamente porque ficamos sem espaço para encostar. Onde vamos encostar as canoas com nossos pescados? Isso foi feito e planejado sem a nossa consulta. [...] não poderemos mais encostar lá onde é o porto, porque ficará só para as balsas de carga e descarga. E nós, pescadores, onde vamos ficar?”, questiona. 

 

A mudança nas dinâmicas do território e modos de vida das pescadoras e pescadores demonstra como os impactos ambientais não foram - e ainda não estão sendo - corretamente avaliados no licenciamento ambiental dos portos. Dos 41 portos identificados no Tapajós em apenas 11 foram encontrados estudos de impacto ambiental. É o que aponta o estudo da Terra de Direitos. 

 

“É essencial que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) trate sobre os impactos previstos a partir da instalação e operação da obra. E essa é apenas uma das etapas que devem ser seguidas no licenciamento. No caso dos portos no Tapajós, a ausência de respeito aos ritos legais do licenciamento ambiental impossibilitou a manifestação das coletividades atingidas e a reparação dos danos causados. Diante desta expansão sem controle e sem fiscalização estatal, atualmente para a garantia de direitos seria necessária a elaboração de estudos complementares que considerassem os impactos sinérgicos e cumulados das obras”, aponta Bruna Balbi. 

 

Sem reparação, apenas impactos

O avanço dos portos faz a abundância de pescados nas comunidades ser apenas uma lembrança de quem pôde um dia usufruir. Ana Cleide relembra: “Antes, víamos cardumes pulando na frente da comunidade, hoje não vemos mais isso por causa dessa invasão e construção dos portos, que mexem com a natureza. Os navios e as balsas espantam os cardumes, e hoje é difícil ver peixes na beira do rio. Até mesmo dentro dos nossos lagos, os peixes estão se acabando”. Para Ana Cleide e Franciloudes, o futuro é incerto devido às transformações que seus territórios estão sofrendo.

 

Em 2023, os rios da Amazônia sofreram com uma seca severa, considerada por pesquisadores a maior da história. E no Rio Tapajós a situação não foi diferente.

 

A prefeitura de Santarém declarou estado de calamidade devido à estiagem do rio que atingiu, principalmente, os povos indígenas, pescadores e ribeirinhos da região. O cenário foi de aldeias e comunidades isoladas, mortandade de peixes, falta de água potável, entre outras questões. 

“A estiagem foi bem grande, secou muito e morreu muito peixe. Mesmo depois, com a água começando a encher, houve a mudança na temperatura da água, o choque térmico causou uma grande mortandade de peixes. A gente sofre porque a reprodução natural foi afetada. Aquela grande mortalidade deixou o peixe mais escasso, e tivemos que optar por outras formas de complementar a renda, porque não dá mais para sobreviver somente do pescado”, comentou Francilourdes.

Esse ano as medições do nível do Rio Tapajós feitas pela Defesa Civil já apontam uma nova estiagem. O órgão já iniciou um planejamento de prevenção, com a entrega de ajuda humanitária antecipada e monitoramento contínuo do rio para prever ações. Santarém, no entanto, ainda não possui um plano municipal permanente de enfrentamento às mudanças climáticas.

Seja pela mudança do clima ou pelo avanço de portos na região, as dinâmicas locais e as relações com a natureza estão se alterando. No caso dos portos do Tapajós uma saída possível para amenizar os impactos trazidos pela suas operações seria garantir a reparação aos povos afetados, como comenta a assessora jurídica da Terra de Direitos. 

“Apenas processos de licenciamento ambiental corretos, com as devidas fiscalizações, podem garantir que povos tradicionais, como os ribeirinhos e pescadores, indiquem medidas de reparação justas e que atendam as necessidades reais das comunidades”. 

Com o contexto de violações que parece se consolidar na região do Tapajós a pergunta que fica é: quem vai conseguir sobreviver sem comer peixe na Amazônia? 

 

Pescadoras e pescadores silenciados

Como relatado pelas pescadoras, a construção e operação de terminais portuários está relacionado diretamente à violação de direitos das comunidades locais. Uma problemática apontada por elas também foi a ausência de consulta sobre a instalação desses empreendimentos tão próximos das áreas de pesca das comunidades.  

Foto: João Paulo/Tapajós de Fato


“Nós, pescadores, não somos consultados. Deveríamos ser consultados porque somos os que mais sofremos com essas construções, que afetam onde encostamos, vendemos nosso pescado e desembarcamos nossa produção. Isso vem acontecendo de forma desordenada, sem consulta com a gente”, afirma Francilurdes.

Essa escuta e possibilidade de decidir sobre um projeto que trará impacto às suas vidas está garantida aos pescadores artesanais por meio da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Esse é um tratado internacional de direitos humanos, em vigor  no Brasil desde 2004, e determina que os povos tradicionais, indígenas e quilombolas devem ser ouvidos antes da implementação de qualquer projeto ou lei que possa impactar seus territórios e as dinâmicas de vida. Porém, como contam as pescadoras, na região do Tapajós a violação deste direito é mais uma a afetar os povos. 


“Vamos perder o direito de navegar, o direito de pescar onde pescávamos, não poderemos mais ficar na beira do rio para tomar um banho sossegado, lavar roupa, porque as grandes embarcações estarão trafegando o tempo todo. [...]nossos direitos serão violados”, finaliza com preocupação Ana Cleide.

 

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