Culturalmente festivais fazem parte do calendário cultural de diversas cidades do oeste paraense, e têm grande importância na movimentação econômica e na cultura diária dos povos da Amazônia. Em destaque fica Santarém, que é o principal pólo de desembarque pesqueiro do Baixo Amazonas, tendo diversos festivais, como o Festival do Tucunaré, no bairro de Jaderlândia; Festival da Traíra em Miritituba no Igarapé da Traíra; Festival do Pirarucu em Santa Maria do Tapará e Festival do Charutinho em Ponta de Pedras.
Devido à seca severa que a Amazônia vem enfrentando desde o ano de 2023, as comunidades enfrentam dificuldades em realizar seus festivais, mas ainda assim, resistem em manter a tradição dos festivais de peixes, como o exemplo do bairro de Jaderlândia em Santarém, que este ano de 2024 realizou o 14º Festival do Tucunaré. Dentre as dificuldades em realizar o evento, a maior foi conseguir “resgatar o pescado”, que comparado aos anos anteriores havia mais facilidade, porém, este ano, a comunidade foi pega de surpresa com seca antecipada e severa, como nos conta Elielma Sampaio, coordenadora do evento há cinco anos.
“Ano passado a seca nos atingiu, mas foi pouco, nós não sentimos tanto. Mas esse ano nos pegou surpresa, a seca foi muito grande, não conseguimos a quantidade de peixe que nós trabalhamos todos os anos que é de cem a cento e cinquenta quilos, varia, esse ano nós não conseguimos atingir nem cinquenta quilos. Sempre pegamos aqui dentro do nosso lago, mas tivemos que comprar peixe duma comunidade vizinha aqui próximo, que é Bom Jardim. Mas não foi fácil pra gente, nós tivemos que arrumar uma estratégia, de como fazer o evento já estava tudo organizado, tudo preparado pra não ter que desistir do dia, então tomamos a decisão com os demais colegas da coordenação que iríamos colocar um outro peixe pra juntar, somar com nosso evento, que foi o Tambaqui”.
Mesmo com as dificuldades, a comunidade conseguiu realizar o evento, inserindo o Tambaqui na culinária do festival, e outros alimentos que somassem para atender as demandas durante a festa. Mas a maior dificuldade, em relato, Elielma afirma que foi:
“Esse impacto foi muito grande mesmo porque nossos pescadores, eu como pescadora, tivemos dificuldade pra ir em buscar o pescado, a seca foi muito grande, meus colegas tiveram que arrastar a canoa pra passar de um espaço seco para chegar ao lago para poder resgatar o peixe. Foi um desafio muito grande pra todos nós”.
Recentemente aconteceu também o Festival do Pirarucu em Santa Maria do Tapará, região de Santarém, e a estiagem também fez com que os comunitários buscassem peixes para o festival em outro lugar, e essa busca teve um percurso de aproximadamente dois quilômetros. Essa foi a maior dificuldade, a seca, como nos conta seu Raimundo de Jesus, coordenador do núcleo de base da classe pesqueira da comunidade.
“A seca é muito grande aqui na nossa comunidade e a dificuldade é conduzir o peixe capturado para o festival, do lago até chegar na comunidade. Até porque tem uma faixa de um quilômetro e meio, né? Da do centro da comunidade até o lago. Então a dificuldade é muito grande, porque pra gente conduzir esse peixe a gente tem que carregar no ombro, os moradores tem que ir carregando no ombro mesmo pra poder chegar até na comunidade”.
No Tapará o enfrentamento se dá pelas distâncias percorridas, pois onde havia água, lagos e igarapés, já não se pode navegar, pois, secaram, dessa maneira, as distâncias são percorridas a pé. Seu Raimundo disse ainda que “nós enfrentamos dificuldade pra chegar num igarapé que vai até chegar no acesso pro lago. Aí do lago nós temos que andar mais esse quilômetro e meio mais ou menos, né? Então essa seca, ela é um desafio muito grande, não só em dois mil e vinte e quatro, mas esses outros anos anteriores o nosso maior desafio é superar a seca e o calor. O calor é imenso, a gente tem que carregar o peixe, tem que cuidar, tudo isso é pela parte do dia. Essa mudança climática, ela nos atrapalha muito, né? O calor foi imenso aqui na nossa região, na nossa comunidade e isso dificulta muito”.
A seca de 2024, que já consta como a maior de todos os tempos, abrange também outras regiões do Brasil, que também vivenciam uma seca severa. Esse cenário se mostra preocupante devido aos recursos hídricos, abastecimento de água, hidrelétricas, todo esse contraste traz sérios prejuízos para a economia e para a sociedade em torno. Conversamos com o professor Roseilson do Vale, professor da Ufopa do curso de Ciências Atmosféricas e Doutor em Meio Ambiente, que compartilhou conosco o olhar científico acerca do desequilíbrio drástico na questão hídrica dos rios.
“Então, o ano de 2024, o que caracterizou essa seca mais forte que a de 2023, foi porque no ano de 2024, a chuva que deveria ter começado no final de 2023, lá em novembro/dezembro, essa chuva foi muito abaixo do esperado, então, como nós já vínhamos de um ano muito seco (2023), a chuva de 2024, ela foi insuficiente para recuperar os nossos rios, os nossos braços de rios e consequentemente, quando chegou agora o período da estiagem nós sentimos isso, né?”.
As cabeceiras sofrem com a ausência de água da chuva, e assim o rio seca além do que deveria.
“O Rio Amazonas ele barra o rio Tapajós, e ele é que comanda o período de subida e de descida das águas do Tapajós, então essa seca que nós estamos vivendo nesses últimos dois anos são um reflexo direto do das mudanças climáticas. Então nós já sabíamos disso, que nós chamamos de eventos extremos, secas muito fortes e cheias muito fortes, né? Então é o que nós estamos vivendo e o cenário, o novo normal agora é isso. Então a população tem que se acostumar com essas secas mais intensas, como braços de rios secando, lagos secando, comprometendo a reprodução de espécies, principalmente nossos peixes da região, e comprometendo a economia. O pescado, a agricultura familiar das famílias ribeirinhas, tudo isso é impactado com esses eventos extremos, principalmente das fortes secas na nossa região”.
Essa fragilidade compromete e coloca em risco para além da economia, mas principalmente a segurança alimentar dos povos ribeirinhos e não ribeirinhos da Amazônia, põe em risco a cultura e torna a vida cotidiana muito mais cansativa, a observar as distâncias a serem percorridas para realizar as mais diversas atividades necessárias de sobrevivência e subsistência.
Os festivais de peixes têm sido impactados por esse desequilíbrio, pois há poucos peixes, e conseguir, com a pesca, a quantidade necessária para a realização dos festivais, tem sido com dificuldade em dobro, devido a seca extrema. Em alguns lugares os festivais já não acontecem mais, e os poucos que tem se realizado, relatam as dificuldades que tem sido manter essa cultura viva.