O projeto “Majés do Baixo Tapajós e o dom de Cura” é fruto de uma pesquisa de campo na região do Baixo Tapajós, no Pará, produzido pela artista autodidata e Psicóloga de formação Patrícia Tapuia, cujas raízes vêm do território do Lago Grande da comunidade de Cabeceira do Marco. A palavra “Majé” é a expressão feminina de “Pajé” e reforça o poder feminino do dom de cura e conhecimento das ervas medicinais, da anatomia humana. São parteiras, puxadeiras, ouvintes e conselheiras, conhecedoras da sabedoria ancestral indígena da Amazônia.
A luta das mulheres para conquistar espaços na sociedade humana foi estruturada num pilar onde o patriarcado predominou e liderou sobre todos os âmbitos da vida, desde estruturas familiares a estruturas de poder político. Desse modo, a luta feminina perdura até hoje para ocupar espaços onde a igualdade de gênero reflita numa sociedade equilibrada e a mulher seja vista com respeito e igualdade diante de seus conhecimentos, pelos quais as mulheres sempre foram perseguidas, principalmente sobre os conhecimentos das ervas e das curas. Com a dona Olinda Tapuia não foi diferente.
O Projeto Majés do Baixo Tapajós e o dom de Cura teve como fonte de inspiração a existência da Majé Olinda dos Santos Tapuia, da região do Lago Grande, Cabeceira do Marco, região onde residem os descendentes do povo Tapuia. Hoje, o povo daquele lugar se encontra em uma retomada do reconhecimento de suas ancestralidades, tanto os indígenas Tapuia quanto o povo de Quilombo daquele território. Olinda Tapuia tinha consigo dons ancestrais de cura, sabia das ervas e curava muitas pessoas com seus conhecimentos medicinais, trazia consigo essa prática de cuidado e de saúde.
Os avós de Patrícia Tapuia mudaram-se para a cidade de Santarém, e por volta dos anos de 1987 à 1989 a colonização em Santarém se mostra muito perversa e se expande. Nesse momento surge também a imposição de uma conversão religiosa cristã, e a Majé Olinda não se rendeu a essa imposição, assim, logo foi julgada como feiticeira, como aquela que realizava práticas demoníacas, aquela que fazia mal à sociedade. E começou a sofrer violências morais, sociais de discriminação, marginalização social, contudo, na época, as pessoas que não estavam ligadas à religião evangélica, no território que se tornou o bairro do Caranazal, procuravam dona Olinda Tapuia para buscar cura tanto no físico, quanto espiritual e emocional. Dessa maneira é que Patrícia Tapuia se sente instigada em retomar essa conexão quando ela nos diz que, “em razão disso, dessa necessidade de fazer essa retomada pra reconhecer esse trabalho da minha avó, pra reconhecer a existência dela e pra reconhecer que antes dela também existirem outras majés a com a minha voz existir outras majés e depois dela teve outras magés, agora nos nossos tempos atuais nós temos Majés. E elas precisam ser reconhecidas e valorizadas também. É por isso que eu escrevi o projeto”.
O projeto mostra sua relevância para a sociedade bem como para os territórios quando se remete à volta ao passado onde se reconhece que na região do Baixo Tapajós essas mulheres parteiras, curandeiras, líderes espirituais tanto nas aldeias quanto nas cidades, nos bairros e em suas comunidades, sempre existiram e ainda existem e são importantes para a sociedade, pois trabalham com a vida, com a saúde e a prática humanizada do cuidado com o outro e reconhecê- las é muito importante, como nos diz Patrícia.
“Essas mulheres por muito tempo foram invisibilizadas, e elas por muito tempo também não tiveram o seu título de Majé. E a gente precisa reconhecer e dar o mesmo valor que a sociedade indígena dá para a figura do pajé, precisa também dar para a figura da mulher indígena curandeira líder espiritual de cura. Elas também merecem serem reconhecidas finalmente como majés também, né? E quando a gente faz isso, a gente diz que elas são importantes dentro das nossas comunidades, e que a existência delas é muito significativa. E quando a gente faz isso a gente valoriza, a gente cuida delas, a gente nivela pela sobrevivência, pela resistência de suas práticas espirituais dentro da nossa sociedade… Então quando a gente volta ao passado a gente reconhece, a gente tem essas memórias a gente também pode pensar no futuro. E como diz Ailton né? O futuro é ancestral, se a gente não tem memória a gente também não vai ter futuro”.
O processo criativo
O processo criativo de Patrícia Tapuia se deu bem antes da escrita e realização do projeto, e a artista não imaginaria que essa criação se tornaria um projeto. A partir da “cosmoagonia”, expressão usada por Glicéria Tupinambá em uma cerimônia sobre “Memórias Ancestrais”, é que surge a cosmoagonia em Patrícia, que a partir dessa experiência subjetiva com sua avó reconhece e se reconecta com a Majelança que sua avó praticava. Levada ao território do Lago Grande Cabeceira do Marco, ela se vê mergulhada em memórias das práticas espirituais de sua avó.
Dessa agonia e rememorada é que surge o desejo de escrever o projeto. E em 2023, após sua volta do território, Patrícia inscreveu seu projeto no edital da Lei Paulo Gustavo de artes visuais e teve seu projeto aprovado. Esse projeto resultou na produção de um livreto de 16 páginas ilustrado com referências às práticas espirituais da Majelança e de seu relato de experiência com sua avó e outras majés aqui da região do Baixo Tapajós. Seu principal objetivo é dar visibilidade através da arte às práticas espirituais destas mulheres, e também resgatar memórias ancestrais e refletir sobre a importância histórica, social, cultural e espiritual das majés, é um trabalho qualitativo que fala sobre essa espiritualidade.
O livreto contém ilustrações feitas a partir do extrato de ervas medicinais e outros elementos da natureza como carvão, jenipapo, cúrcuma, urucum, pião roxo, arruda, espada de são jorge, folha de comigo ninguém pode, tacuari, mucuracaa, hortelã grande, amor-crescido, entre outras, e como base do desenho, o lápis. E assim como extrato das plantas medicinais cura e as majés fazem seus remédios, esse mesmo extrato esmagado no pilão, cozido no fogo à lenha e usado para produzir as tintas das artes, também se torna extrato de cura, como se fossem remédios.
“Então, a característica das Tintas tem muito disso das plantas medicinais que elas usam, então foi feito o extrato dessas plantas e foi pintado com elas as ilustrações. Foi um trabalho bem rico, a gente conseguiu um número expressivo de exemplares, foram 5.000 exemplares, esses exemplares vão ser distribuídos para a maior parte do território do Lago Grande e também para algumas escolas daqui de Santarém, associações, organizações sociais, a intenção é divulgar mesmo a vida e a existência das Majés, né? De valorizar, de dar visibilidade a essas mulheres e dar o nome que elas merecem né? E aí esses livretos vão ser distribuídos gratuitamente”.
A artista Patrícia Tapuia conclui, “falar sobre as majés não é inédito, vem um movimento já falando sobre elas, timidamente ou muito rapidamente, mas começou a falar, por exemplo, em 2022, o jornal Tapajós de Fato fez uma entrevista e nessa entrevista ele falou sobre a presença das majés, era uma entrevista sobre o povo Tupinambá, e ele citou as majés. Lá, em 2023 a Glicéria Tupinambá num evento com direção do Ailton Krenak chamado Memórias ancestrais ela também cita a Majé, bom, com toda essa cosmoagonia é que fez com que eu escrevesse sobre as Majés, reafirmar- se, entender- se, que a minha vó era uma majé e que nós temos majés na nossa região e que elas precisam ser consideradas e dar a visibilidade e o nome que elas merecem. Ao dom de cura realizado pelas Majés, quando as pessoas lhe perguntam quanto devem pagar elas simplesmente respondem “aquilo que o coração mandar” é uma dedicação radical ao outro, é este o Dom de Cura que conheci”.
O lançamento do livreto será no dia 19 de novembro de 2024 e será realizado no auditório da Universidade Federal do Oeste do Pará- UFOPA, campus Rondon, é possível fazer inscrição prévia pela internet. O livreto será disponibilizado gratuitamente aos participantes do evento que será uma mesa redonda, com carga horária de 4 horas e início às 17 horas.