Em meio a densa camada de fumaça que encobre Santarém, a seca severa que ainda impacta diversas comunidades e a chuva, de forma regular, que não chega, o povo da Amazônia resiste. E resistência foi o que representou o XIX Encontro das Comunidades Quilombolas de Santarém, organizado pela Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), no último fim de semana, nos dias 22, 23 e 24 de novembro, no quilombo do Arapemã, em Santarém, marcando o novembro negro.
O Encontro, que é realizado todos os anos há quase 20 anos e que marca as comemorações do 20 de novembro, dia da Consciência Negra, ha três anos já, traz em sua programação o “Aquilombar na Amazônia”, evento cultural que celebra a diversidade e a existência do povo preto, quilombola na Amazônia.
“Somos todos bem-vindos e bem-vindas, fiquem à vontade nessa construção de conhecimento. A gente leva esse lema da FOQS que a gente não está ensinando ninguém, está construindo conhecimento a partir da percepção da criança, do idoso (nossos grios), das mulheres, dos jovens. Que a gente precisa também da juventude nessa construção coletiva [...] então vamos dialogar e vamos cantar e vamos dançar porque também, a música é a nossa nossa identidade, é a nossa festividade”, pontuou Marluce, diretora de juventude da FOQS
Quase 20 anos de encontro
O Encontro realizado na Semana da Consciência Negra, marca um momento de celebração, de troca, de comunhão, mas também de diálogo. Regado por ancestralidade, pertencimento, união, companheirismo, renovação de energias, muita ciranda, banho de cheiro, dança e musicalidade, sua programação também trouxe discussões sobre pautas fundamentais e urgentes para as populações quilombolas da Amazônia e para os territórios ali representados.
A pauta mais importante no encontro, e que marca toda a luta do povo quilombola da região, é a titulação das terras quilombolas. Dona Cleide Vasconcelos, mais conhecida como Cleide do Arapemã, liderança comunitária, cantora e compositora, lembra que na região de Santarém, somente o quilombo Pérola do Maicá tem suas terras tituladas, as demais, ainda lutam em um processo de titulação, que para a maioria delas, se arrasta por anos.
“Um sonho né [...] ainda hei de vê, antes de morrer, todos os nossos territórios titulados”, fala emocionado um participante do encontro, que reside no quilombo de Tiningu, no planalto santareno.
Para a discussão do tema, a mesa “Cenário atualizado dos Processos de Regularização Fundiária - avanços e entraves”, contou com a participação de representantes do Incra e do MPF.
Para a servidora do Ministério Público Federal, Elisangela S. Pinheiro, que participou do encontro representando o órgão, sendo designada pelo procurador da República, Vitor Vieira Alves, “a experiência de participar de um evento desse porte foi incrível [...] porque a gente tem a possibilidade de, sendo o Ministério Público Federal o advogado da sociedade, de se conectar com o que há de mais profundo nos saberes tradicionais e de incentivo, de inspiração para dar continuidade no trabalho, na política pública, de conservação, de proteção desses saberes”, enfatiza.
Ela reforçou em sua fala, de forma emocionada, que uma coisa é existir a legislação que determina a atuação da instituição e outra coisa é a troca, a possibilidade de trocar experiências, trocar toda a mística que envolve o estar ali [...] de pé no chão, em uma terra sagrada, terra de resistência”.
Além da pauta titulação, os participantes do encontro dialogaram sobre os grandes empreendimentos, projetos governamentais de construção de portos graneleiros, hidrovias, ferrovias, hidrelétricas e outros, que tem tomado conta do território amazônico e que modificam e interferem de forma direta na dinâmica da vida diária e nos costumes das populações que há séculos cuidam e preservam esse bioma.
“Somos meia dúzia gritando no planeta”, enfatizou a professora Agda Vasconcelos, do Quilombo Nova Vista do Ituqui.
Seca, queimada e fumaça no quilombo
Após uma travessia de menos de 30 minutos pelo rio Tapajós, chega-se ao quilombo de Arapemã, localizado em frente a Santarém. Impactado pela seca severa dos rios que o banham, Tapajós e Amazonas, o território foi vítima de uma grande queimada dois dias antes da realização do encontro, no dia 20.
O fogo queimou uma grande quantidade de floresta e por muito pouco, não chegou à escola, ao barracão da comunidade e ao barraco onde ficam armazenados o óleo diesel, utilizado no motor que gera a eletricidade na comunidade.
“[...] nós tivemos duas ações de fogo no nosso território, na Resex, e aí eu chego aqui e vejo isso aqui queimado assim para a gente, que quando a gente vê uma situação dessa a gente se emociona porque a gente não quer isso, e se a gente não tiver floresta, não tiver nada de verde, como é que vamos respirar? Esses dias ainda eu estava vendo uma matéria que aparece um mapa, não só do Brasil, onde mostra que a Amazônia que joga o ar puro, digamos assim [...] para todos os países poderem respirar. Agora, se a gente que tem esse verde, essa floresta ainda, não tanto, 100%, não tivermos mais, acabar com tudo, como vamos viver?”, desabafa indignada e emocionada dona Arlete Kumaruara, cacica da aldeia Muruari na Resex Tapajós-Arapiuns.
O Pará, em 2024 foi o estado com mais focos de queimadas do país, só no estado foram 51.291 focos até o dia 25 de novembro, segundo o BDQueimadas, Sistema de Monitoramento de Queimadas do INPE. Só no mês de setembro, o pior mês do ano, foram 17.434 focos, em outubro e novembro esse número caiu exponencialmente, mas a situação ainda é preocupante. Em outubro foram registrados 7.120 focos e em novembro (até o dia de hoje) o sistema marcou 7788 focos de queimadas no estado.
O Mapa do BDQueimadas mostra que a região de Santarém, representa um número elevado desses focos de incêndios.
Nara, que reside na região do PAE Eixo Forte, reforça que “a situação está indo de mal a pior”. Para ela, a situação da Amazônia é essa, castigada pelas mudanças climáticas. “Aonde a gente vá hoje, em todos os territórios, a situação é a mesma, a preocupação é a mesma, o cuidado com o meio ambiente, com a destruição da casa comum”, aponta ela preocupada. Ela conta que a alguns anos atrás os mais velhos já anunciavam, “daqui a pouco não teremos mais água”, e muitos não acreditavam. Mas a história está aí comprovando, o rio seco, a água contaminada, o peixe morrendo ou contaminado. Além disso, o povo está sendo sufocado pela fumaça.
Reforçando a fala da Nara e as suas preocupações, no domingo (24) Santarém registrou o pior índice de Qualidade do Ar, 544, um dos piores do planeta.
“Nós paramos os portos por dez anos. Os quilombolas pararam os portos, né, isso foi matéria em tudo quanto foi jornal, e de fato aconteceu. Só que agora, na Amazônia, nós estamos aqui no olho do furacão, e quem é que vai lutar pelo seu território? Como que a gente entende essa luta pelo território? Porque é todos nós, é homem, é mulher, é as crianças, os jovens, é todo mundo. Então, esse espaço aqui é um espaço de debate [...] para todos, todos nós”, enfatiza Miriane Coêlho, presidente da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém.
Mulheres e a medicina ancestral: cura e memória
A programação do encontro também abriu espaço para um intercâmbio entre as forças femininas das mulheres indígenas e quilombolas, mulheres da floresta, que por meio das ervas, dos banhos de cheiro, da espiritualidade e da ancestralidade, curam.
Em um momento de conexão, de renovação e de partilha foi possível ouvir relatos dos poderes medicinais das ervas, receitas foram compartilhadas e o banho de cheiro lavou a todos os presentes.
III Aquilombar na Amazônia
As duas noites do evento foram marcadas pelos festejos em comemoração ao 20 de novembro. Como posto na programação, estava armada a Kizomba.
A cantora Cleide do Arapemã ou Cleide Vasconcelos e o Grupo Torre de Babel, juntamente com outros artistas da região embalaram os brincantes. Teve apresentação de danças típicas como o Maculelê e o Carimbó. O grupo de dança do quilombo de Surucuá também esteve presente e fez uma belíssima apresentação.
Ao fim do encontro foi realizado o sorteio do quilombo que receberá a programação da Consciência Negra em 2025 e o território sorteado foi o do Tiningu.
Como bem explicitou o tema do XIX Encontro das Comunidades Quilombolas de Santarém… “A Amazônia também é quilombola”.