Domingo, 26 de Janeiro de 2025
Reportagem Especial Seca 2024

Guardiões do Lago: comunitários acampados seguem trabalhando voluntariamente na proteção de animais em meio a seca que afeta o município de Monte Alegre, no Pará 

Além de diversas espécies de peixes, até agora foram resgatadas pelo menos 516 tartarugas e tracajás, 2 peixes-boi e 1 tamanduá. Outros animais também são encontrados, como arraias e capivaras que tentam sobreviver em meio a seca.

16/12/2024 às 13h46 Atualizada em 16/12/2024 às 18h53
Por: Isabelle Maciel Fonte: Tapajós de Fato
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Isabelle Maciel - Tapajós de Fato
Isabelle Maciel - Tapajós de Fato

Há quase dois meses comunitários estão acampados na Ilha de Tromboia, que fica na região do Lago Grande de Monte Alegre, no Pará, realizando trabalho voluntário de resgate de animais que padecem diante da seca extrema que tem afetado a Amazônia neste ano de 2024, resultado da crise climática que o mundo vem enfrentando.

Essa força tarefa iniciou no mês de outubro, mais especificamente no dia 20, quando os moradores da comunidade Aldeia viram a enorme quantidade de peixes agonizando em meio às poças de lama do Lago Grande que secou completamente. A partir daí alguns comunitários iniciaram um trabalho árduo de remoção de diversas espécies de peixes, levando para locais que possuíam água em meio ao lago cada vez mais seco, com isso perceberam a demanda urgente de fazerem base, acamparam para continuar o trabalho.

Pescadores e comunitários fazem força tarefa e salvam cerca de 35 mil peixes devido a seca extrema que afeta o município de Monte Alegre, no Pará

Após esse período intenso de resgates, os comunitários seguem na região acampados não só salvando peixes, mas diversos animais como arraias, tartarugas, peixe-boi, capivaras, tamanduá e aves migratórias que estão pela região nesse período. Com isso, esse grupo de voluntários que têm dedicado seus dias na defesa de seu território se tornaram verdadeiros Guardiões do Lago Grande de Monte Alegre.

Área completamente seca em uma das regiões do Lago Grande de Monte Alegre / Foto: Guilherme Jardel

Resgate de animais 

O trabalho dos moradores inicialmente era de resgate de diversas espécies de peixes, contabilizando hoje mais de 50 mil salvos, mas com o passar dos dias outros animais em meio a seca buscam água para sobreviver, sendo necessário começar o resgate de tartaruga, peixe-boi, capivara, tamanduá, entre outras espécies que antes não se encontravam nesta região.

Resgate de centenas de peixes feito pelos comunitários / Foto: Arquivo pessoal

“Outro dia no acampamento já apareceu tartaruga pequena, isso é algo curioso pois devido a estiagem aqui nesse local a gente já pegou cotia que é lá da Terra Firme, a gente pegou aqui atrás de água um tamanduá também que provavelmente ia morrer com a estiagem, vários animais que antes não eram encontrados aqui vindo atrás de água”, relata Lucide Dos Santos, morador que é agente ambiental voluntário da associação do Lago Grande de Monte Alegre, e tem atuado nos resgates.

Resgate de um peixe-boi feito no dia 31 de outubro pelos comunitários / Foto: Arquivo pessoal  

Segundo Lucide, além de diversas espécies de peixes, até agora foram resgatadas pelo menos 516 tartarugas e tracajás, 2 peixes-boi e 1 tamanduá. Além de outros animais como arraias e capivaras que tem tentado sobreviver em meio a seca.

Momento de realização de soltura de 3 filhotes de Pirarucu na parte do Lago que ainda possui água / Foto: Guilherme Jardel

Animais mortos

Apesar do árduo trabalho diário de resgate feito pelos comunitários, a morte dos animais é inevitável, e é praticamente impossível quantificar os que morreram debaixo do sol escaldante sob o lago completamente seco.

Algumas tartarugas mortas e já secas que foram encontradas pelos comunitários / Guilherme Jardel

Nas proximidades do acampamento o cenário é triste, ao caminhar pelo local é possível encontrar peixes, tartarugas, vacas mortas e secas, que muito provavelmente agonizaram até o último segundo de suas vidas atrás de água em meio ao calor.

Vaca morta que está à poucos metros do acampamento / Foto: Guilherme Jardel

“Esses animais aqui  já foram encontrados mortos, nós temos uma extensão imensa aí desse Lago Grande, e onde a gente vai a gente encontra esses tipos de animais aqui,  tracajás e tartarugas, e outras espécies já mortas. Então a gente tá pedindo, até mesmo para nossos comunitários, que ajudem mais na preservação”, relata Francisco Rebelo triste ao olhar diversas tartarugas mortas, ele é um dos moradores que tem ajudado nos resgates.

Comunitário relatando sobre a quantidade grande de animais encontrados mortos pela extensão seca do Lago / Foto: Isabelle Maciel - Tapajós de Fato

Falta de apoio 

Em relação ao apoio de órgãos oficiais e governos, a única instituição que tem ajudado, após os moradores acionarem o Ministério Público, é o Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade - Ideflor-Bio, que cedeu 6 agentes e um carro de apoio para o acampamento, por conta de que a região afetada se encontra dentro da APA Paytuna, que é área de atuação do Instituto.

Acampamento onde estão comunitários e agentes do Ideflor-Bio, na foto é possível ver o carro de apoio cedido pelo Instituto / Foto: Guilherme Jardel

Órgão oficiais como Secretária Municipal de Meio Ambiente de Monte Alegre, já foram avisados da necessidade de ajuda ao trabalho voluntário dos moradores, mas segundo os comunitários, até o momento a única ajuda da Semma foi na locomoção de um peixe-boi resgatado que foi mandado para Belém.

Essa é uma das demandas dos comunitários, que a ajuda de órgãos e governos na esfera municipal, estadual e federal seja feita, pois o trabalho é desgastante, e quanto mais veículos para resgates e alimentação para quem está acampado, melhor seria para quem tem arriscado sua vida na defesa do território, defesa essa que deveria está sendo feita por tais governos que têm se omitido diante da situação alarmante que o Lago Grande de Monte Alegre enfrenta.

Ameaças sofridas 

Segundo os relatos dos acampados, além dos diversos desafios enfrentados no dia a dia dos resgates, outro problema que precisam lidar é com as ameaças que têm sofrido por conta de estarem fazendo a defesa do Lago.

Além de estarem combatendo a pesca predatória, eles também têm atuado no combate da caça predatória, principalmente das aves migratórias que se encontram na região nesse período.

“A gente vem sofrendo muitos ataques de predadores e a gente também recebe ameaças. A gente sempre recebe ameaças de terceiros, porque a gente vem fazendo esse trabalho, e  hoje tá um comércio de marreca aqui porque tem muita ave migratória, e estão vendendo até 10 reais uma unidade de marreca viva, então teve pessoas que pegou 3000 marreca,  só fazer a conta né, a pessoa já tá sobrevivendo do comércio, e aqui tem outras espécies, mas graças a Deus devido ao nosso trabalho eles tão imigrados aqui, porque a gente tá com essa base de monitoramento”, conta Lucide.

Algumas aves migratórias na única parte do Lago que não secou / Foto: Guilherme Jardel

Comissão de Conservação de Lagos e Rios de Monte Alegre

Esse trabalho na defesa do território não iniciou em outubro de 2024, mas sim há pelo menos 8 anos, com a união de comunidades para criar uma comissão que lutasse pelo bem comum da região do Lago Grande, como relembram os comunitários acampados.

Por conta do histórico de conflitos devido à pesca predatória, moradores da região do Lago Grande, entre os anos de 2017 e 2018 criaram a Comissão de Conservação de Lagos e Rios, com objetivo de proteger e garantir o pescado para as comunidades. A criação da Comissão se deu a partir da percepção dos comunitários no aumento das invasões no território para pesca predatória, que já estava gerando escassez de peixes, impactando no tempo para pegar os pescados onde muitas vezes chegavam até a não pescar nenhum.

Atualmente cerca de 17 comunidades fazem parte dessa rede de proteção do território. Ao longo desse anos de atuação e unindo forças com órgãos ambientais e organizações sociais, a Comissão desenvolve diversos trabalhos em torno de defender seus modos de vida e suas terras, e agora com os impactos severos da seca tem atuado no resgate de animais.

Antônio Figueira, coordenador da Comissão, comenta sobre a importância desse trabalho comunitário. “Nós como comunitários que já fazemos esse trabalho há 8 anos, nós sabemos nosso dever, e aqui nós costumamos fazer um trabalho que nós sempre falamos e divulgamos que ninguém melhor do que nós pra saber o que o que é melhor pra nós, não é querendo falar sobre os órgãos, mas sim sobre morarmos aqui, por transitarmos aqui dia e noite, a gente sabe nossas necessidades. Nosso dever como comunitário, como cidadão, como trabalhador do coletivo é fazer com que esse trabalho continue para poder a gente deixar para os nossos filhos o conhecimento, até mesmo eles poderem usufruir das espécies que hoje estão aqui próximo da base”.

Tenda do acampamento dos moradores / Foto: Guilherme Jardel 

Apesar do momento ser crítico e cruel principalmente com os animais, ainda há espaço para esperança e felicidade entre aqueles que estão trabalhando arduamente para salvar as vidas da floresta e do rio, afinal a preservação já vem sendo feita há tempos e segue firme. Como destaca Francisco:

“Para mim é uma alegria porque o que a gente está vendo hoje o que há algum tempo não via,  porque assim se a gente não estivesse preservando há muito tempo, agora a gente não tinha mais esses pirarucus, não tinha mais tracajás aqui nesse lago, já tinha sido destruído. Então eu me sinto triste por ver esses mortos, mas feliz porque tem esses aqui que estão vivos e daqui pra frente provavelmente esses aqui não vão ser mortos até crescer, já estão numa proteção. Então eu vejo que é uma responsabilidade nossa e também de mais pessoas, inclusive dos nossos órgãos. O que nos traz mais a alegria de estar aqui hoje, ser mais comprometido, é ver o nosso trabalho sendo evoluído, as espécies estão sendo protegidas, estão sendo aumentadas, tão migrando mais espécies de aves pra cá pra nosso território, isso é muito importante pra nós, pros nossos filhos, que inclusive a gente manda algumas fotos e eles ficam muito feliz, então assim é uma alegria e motivação para continuar na preservação”.

Francisco mostrando os três filhotes de Pirarucu que tinham acabado de resgatar com vida / Foto: Guilherme Jardel

O trabalho coletivo dos moradores de diversas comunidades de Monte Alegre é um exemplo de como os povos da Amazônia têm lutado pelos seus territórios diante da crise climática que o mundo vem vivendo. O bem viver dos povos da floresta é afetado de forma direta e cruel, deixando muitas pessoas sem ter o que comer, beber e sem a possibilidade de se locomover, matando os rios, os animais, e tudo em volta que depende da preservação do ecossistema.

Nesse momento esses comunitários que têm sido verdadeiros Guardiões do Lago, estão travando uma luta importante e perigosa, sem dúvidas um trabalho que merece reconhecimento, mas além disso precisam de apoio, mas se encontram praticamente abonados pelos governos. Esse é um reflexo de como a crise climática vem sendo tratada por quem detém o poder, muitas vezes como segundo plano, ou muitas vezes negada.

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