Educação e COP 30: o paradoxo de um evento global em meio ao descaso local

Há 6 dias indígenas bloqueiam a BR 163, na altura do KM 83, no município de Belterra em apoio aos indígenas que ocupam a sede da SEDUC em Belém. A luta dos manifestantes é pela revogação da Lei 10.820 e pela exoneração imediata do então Secretário de Educação do Estado, Rossieli Soares.

21/01/2025 às 13h20 Atualizada em 21/01/2025 às 13h56
Por: Marta Silva Fonte: Tapajós de Fato
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Há 6 dias indígenas do Baixo Tapajós bloqueiam a BR 163 no Pará/ Foto Marta Silva (Tapajós de Fato)
Há 6 dias indígenas do Baixo Tapajós bloqueiam a BR 163 no Pará/ Foto Marta Silva (Tapajós de Fato)

Em novembro de 2025, Belém, capital do Pará, sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 30), colocando o estado no centro das discussões globais sobre clima e sustentabilidade. Em contraste, desde 14 de janeiro, lideranças indígenas e comunidades tradicionais do Pará têm protagonizado um movimento histórico de resistência contra a substituição do ensino presencial pelo modelo de educação à distância nas escolas de suas comunidades e aldeias.

As manifestações, que incluem a ocupação da sede da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), em Belém desde o dia 14 de janeiro, e o bloqueio da BR-163, há 6 dias, e de outras rodovias do estado, lançam luz sobre uma luta que vai além da educação, envolvendo também a defesa dos territórios e o futuro dos povos indígenas.

Nós estamos aqui na BR-163, no quilômetro 83, na ocupação pela revogação da lei 10.820, que é a lei que acaba com o SOME e o SOMEI. Estamos aqui com representantes dos 14 povos do Baixo Tapajós, se somando nessa luta, juntamente com os sindicatos dos professores do Oeste e do Pará, porque são vários municípios que estão aqui presentes, vários professores, e é um momento histórico, um momento que os povos indígenas realmente estão na dianteira dessa luta pela educação”, explica Lucas Tupinambá, vice coordenador do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns.

 

A mobilização dos indígenas na BR fortalece o movimento dos indígenas que ocupam a sede da SEDUC em Belém/ Foto Marta Silva (Tapajós de Fato)

Em luta, indígenas bloqueiam a BR 163

Há seis dias a BR-163, essencial para o escoamento da produção agrícola, foi transformada em palco de reivindicações e segue sendo bloqueada. Indígenas, com apoio de organizações do movimento social e dos profissionais da educação, que se somam à luta, seguem acampados ao longo do KM 83 da rodovia, no município de Belterra.

A escolha da via não é acidental: trata-se de um símbolo do modelo de desenvolvimento que prioriza interesses econômicos em detrimento dos direitos indígenas e ambientais. Para os manifestantes, o fechamento da rodovia demonstra a força do movimento, mesmo diante das tentativas do governo de Helder Barbalho (MDB) de minimizar a mobilização.

Esse é mais um ato que marca as ações que têm acontecido, encabeçado pelo movimento indígena em diversas regiões, em reivindicação pela revogação da Lei nº 10.820/2024 sancionada por Helder Barbalho “na surdina” no final de dezembro de 2024.

A manifestação é uma resposta à implementação do ensino à distância, promovido pelo Centro de Mídias da Educação Paraense (CEMEP), que substitui o Sistema Modular de Ensino (SOME) e o Sistema Modular de Ensino Indígena (SOMEI). Para os manifestantes, a medida representa um ataque à educação pública e aos territórios tradicionais.

A juventude indígena se junta a manifestação em defesa da manutenção do ensino médio presencial nas aldeias e territórios/ Foto Marta Silva (Tapajós de Fato)

“[...] a retirada do SOME vai ser muito ruim pra nós, povos indígenas, principalmente pra nós, Munduruku, porque os professores, eles ajudam muito a preservar nossa cultura”, enfatiza Aline Munduruku, jovem aluna do ensino médio indígena

No entendimento dos manifestantes e dos profissionais da educação, que se somam a luta dos povos indígenas acampados ao longo da BR 163, o sistema proposto pelo Centro de Mídias da Educação Paraense (CEMEP) ignora a realidade das comunidades, que sofrem com infraestrutura precária, falta de acesso à internet e ausência de professores capacitados para atender às especificidades culturais e linguísticas dos povos originários​

Revogação da Lei 10.820/2024

Sancionada pelo governador Helder Barbalho no fim de 2024, a Lei 10.820/2024 marca um retrocesso em relação a direitos já conquistados pela educação pública no Pará e seus profissionais ao longo de décadas de luta. Além disso, extingue o ensino presencial modular, que leva educação média a comunidades distantes. Logo, a revogação da mesma é uma das principais pautas de luta neste momento. 

 

A principal pauta de reivindicações dos manifestantes é pela revogação da Lei 10.820 sancionada pelo Governo Helder/ Foto @Citabt (Conselho Indígena Tapajós Arapiuns)

Nós temos duas reivindicações muito fortes e que a gente não vai arredar o pé. A primeira é a exoneração do secretário do estado de educação e a revogação imediata da lei 10.820. O que a lei traz? A lei traz a extinção por completo de dois fundamentais pilares para a educação não só apenas indígena, mas também para todo o contexto histórico escolar do Estado do Pará, que é o SOMEI e o SOME. Claro que o governo, ele está trazendo agora uma fala dizendo que nós indígenas não estamos aceitando e ele já revogou, já deu uma abertura ali, já negociou conosco. Isso é um fato à parte. O que aconteceu? O SOMEI, de fato, conseguiu inserir e aprovar e manter, mas o SOME não. O SOME ele continua sendo extinto e isso não é viável para a educação. Nós não estamos aqui com uma bandeira apenas indígena, nós estamos lutando por toda a educação escolar do estado do Pará. SOME e SOMEI, regular, todos eles precisam avançar e a gente só vai conseguir isso unindo forças”, pontua a professora Karina Borari, professora na Escola Indígena Borari em Alter do Chão

Como pontuado pela professora Karina, além da revogação da lei, que fere direitos e ataca o Plano de Cargos e Carreiras dos profissionais da educação no Pará, os indígenas em luta pedem a exoneração do Secretário Estadual de Educação, Rossieli Soares. 

O secretário de Educação, traz consigo um histórico de decisões controversas em cargos anteriores, incluindo sua passagem pelo Ministério da Educação e pela Secretaria de Educação de São Paulo, conhecido por defender modelos tecnocráticos e neoliberais, frequentemente priorizando soluções que desconsideram as especificidades regionais e culturais. 

No Pará, ele foi alvo de críticas pela falta de diálogo com comunidades escolares e sua postura centralizadora e insensível às demandas locais, reforçando a percepção de que a educação está sendo tratada como uma ferramenta de controle político, em vez de um direito fundamental.

Os profissionais da educação têm reforçado os atos de movimentação dos indígenas no Pará/ Foto Marta Silva (Tapajós de Fato)

Resistência e coragem no coração da Amazônia

Diante do silêncio do governador Helder Barbalho (MDB), da falta de ação da então governadora em exercício Hana Ghassan (MDB) e das inúmeras fake news que tem povoado a internet descredibilizando, e em alguns casos, criminalizando a mobilização, os manifestantes resistem. Eles permanecem firmes acampados na SEDUC e nas rodovias do estado, com suas redes atadas e cânticos que ecoam a força do espírito ancestral.

Segundo reportagem do Amazônia Real, o MPF requisitou, na última sexta-feira (17), à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), do Ministério da Educação (MEC), o posicionamento atual da União sobre o modelo de aulas telepresenciais previsto pelo governo do Pará para povos da floresta, do campo e das águas.

Por meio de suas redes sociais, a Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara informou que o Governo Federal tem acompanhado a situação no estado. Quanto a Secretaria de Povos Indígenas do Estado do Pará, criada no governo Helder, vêm sendo duramente criticada pelos manifestantes, que denunciam a falta de alinhamento da mesma com a luta indígena, bem como, sua inutilidade e falta de autonomia.

 

A luta indígena neste momento protagoniza a defesa universal por uma educação de qualidade no estado do Pará

 

O que está em jogo

O protesto contra a educação à distância transcende a luta pelo direito à escola presencial. Ele representa a defesa de um modelo de vida que resiste às pressões do agronegócio, das mineradoras e de políticas que negligenciam as realidades da Amazônia. A coragem dos povos indígenas em bloquear a BR-163, e outros trechos de rodovia do estado, e ocupar a Seduc é um lembrete de que o futuro da floresta passa, inevitavelmente, pela educação e pela proteção de seus territórios.

“Nós só sairemos daqui quando a lei for revogada e publicada no Diário Oficial. Então, para isso a gente precisa estarmos juntos, como agora a pouco a gente se reuniu com os professores do SOME, professores do ensino regular, da rede tanto estadual quanto municipal de ensino fazendo presente. Neste momento é muito importante todas as forças agrupadas aqui na BR-163, até porque a BR-163 é um espaço estratégico por ser um grande corredor logístico do Brasil, né? Fala-se que em Santarém é o quinto maior porto de exportação de grãos. E nós estamos aqui ocupando a BR e só sairemos daqui após a revogação da lei”, pontua Lucas Tupinambá.

Enquanto o Pará se prepara para receber líderes mundiais na COP 30, os povos indígenas exigem que seus direitos sejam reconhecidos e respeitados. A estrada pode estar bloqueada, mas a mensagem segue em movimento: sem justiça para os povos da floresta, não há futuro sustentável para a Amazônia ou para o planeta.

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