Desde o dia 14 de janeiro povos indígenas das regiões do Baixo, Médio e Alto Tapajós protagonizaram um importante levante em favor da revogação da Lei 10.820/2024 do Governo do Estado do Pará. A legislação representa um grave retrocesso para a educação indígena ao extinguir o Sistema Modular de Ensino Indígena (SOMEI) e precarizar ainda mais o acesso à educação pública nas comunidades tradicionais. Além disso, a lei ameaça direitos conquistados, desconsiderando a realidade educacional dos povos originários ao ignorar a importância da educação diferenciada e da troca de saberes nos territórios.
Durante os muitos dias de mobilização, a ocupação da sede da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), em Belém, e o bloqueio da BR-163, na altura do Km 83, em Belterra, tornaram-se espaços de resistência. Durante esses mais de 20 dias de mobilização, a arte assumiu um papel essencial não apenas como forma de protesto, mas também como alento, fortalecimento da luta e conexão entre os manifestantes.
Desde o início da mobilização, rodas de carimbó, batalhas de rap, cantos sagrados, grafismos e outras manifestações culturais estiveram presentes no dia a dia dos manifestantes. Pelos espaços de ocupação, vários artistas indígenas ou não indígenas passaram e utilizaram a sua arte como mecanismo de denúncia e reivindicação, fortalecendo a mobilização.
"A arte e a comunicação são vetores essenciais para a mobilização e sensibilização da sociedade sobre temáticas que não ganham espaço na mídia tradicional", destacou Matheus Botelho, comunicador social, produtor cultural e ativista, que em muitos momentos esteve somando a luta na sede da Seduc em Belém.
Além de protesto, a arte também representou um espaço de cuidado e bem-estar entre os manifestantes. Em entrevista ao Tapajós de Fato, Raquel Tupinambá, liderança indígena que se fez presente na ocupação na BR 163 por vários dias, ressaltou a importância dos momentos culturais para manter o equilíbrio emocional do grupo.
"O grafismo é muito forte na nossa cultura. A gente acredita que traz força, proteção e energia de limpeza. As músicas e os rituais nos mantêm firmes, nos ajudam a renovar forças todos os dias”, ressalta.
Para os povos indígenas, o grafismo (pintura corporal) tem um significado que vai além da estética: ele é um elemento de proteção espiritual e reafirmação identitária. "Cada pincelada que damos no corpo de um parente traz força, tanto na espiritualidade quanto na soma do nosso movimento", explicou, em entrevista, Sandro Arapiun, jovem da Aldeia Novo Horizonte que também esteve na ocupação da BR 163.
Assim como ele, Aristides Maianeto, outro jovem indígena do povo Maytapú, reforça a importância da arte e do grafismo indígena durante os dias de mobilização. "Aqui, cada traço conta uma história e reforça nosso pertencimento", complementou Aristides Maianeto, comunicador do CITA (Conselho Indígena Tapajós Arapiuns).
Outro elemento fundamental no levante foi a produção audiovisual. Fotografias e vídeos ajudaram a levar para fora do território de ocupação a realidade dos manifestantes e suas reivindicações. "Uma fotografia pode dizer muito mais do que palavras. Pode mostrar a força de um povo, de uma educação, a resistência dos parentes na linha de frente", destacou Aristides Maianeto.
Ele reforça que a imagem e o registro audiovisual não apenas documentaram a luta, mas também fortaleceram a narrativa de resistência dos povos indígenas, para o mundo.
A presença da música foi um dos aspectos mais marcantes da mobilização. "Tem momentos em que as músicas ajudam a conter os ânimos, especialmente quando há confrontos com caminhoneiros ou com pessoas que querem passar pela BR", explicou Raquel Tupinambá.
Muitos foram os momentos em ambas as frentes de mobilização, tanto na sede da SEDUC, quanto no acampamento na BR 163, que o carimbó, os cantos sagrados e até o maracá acompanharam os rituais e os momentos de descanso dos manifestantes, ajudando a manter a harmonia, a alegria e a vitalidade do grupo.
No acampamento na BR 163 a banda Caldo de Piranha, composta por músicos da região, foi uma das diversas manifestações culturais que contribuíram com a ocupação. "Nossa música canta a natureza, a resistência, e denuncia o projeto de morte que quer fragilizar os povos indígenas", afirmou Guilherme, integrante do grupo.
Além deles, as Karuanas, grupo indígena de mulheres cantoras, e outros parceiros artísticos marcaram presença, fortalecendo a luta.
Da mesma forma, diversos artistas regionais se fizeram presente em momentos diversos na sede da Seduc em Belém, organizando momentos de conversas e debates, bem como, apresentações culturais.
A realização do Festival Revoga Já, ocorrido na sede da SEDUC, após 19 dias de ocupação, foi um desses momentos em que a arte se somou à luta e a luta se alimentou da arte. O mesmo contou com o apoio de mais de 40 artistas, produtores culturais, mestres e mestras da cultura popular, artistas visuais e educadores, que uniram suas vozes em defesa dos direitos à educação e à cultura, em um processo que demarca a relevância da arte e de suas expressões, também, como ferramenta nas lutas e nos processos de enfrentamento e resistência, tanto pelo seu viés mobilizador, tanto por seu poder de conectar pessoas, conectar propósitos e de conectar alegria.
“[...] todos estão manifestando, protestando de diversas formas, principalmente através da arte, através da música, através da dança, dos rituais também. Então é super importante entender que é dessa forma que a gente vai conectando ainda mais pessoas dentro desse debate e a favor dos direitos humanos”, ressalta Matheus Botelho.
O tempo prolongado da ocupação demandou um equilíbrio entre resistência e descanso. "Em uma mobilização como essa, que já dura mais de 20 dias, é fundamental o bom convívio. A arte, a música, o grafismo e os rituais têm sido fundamentais para manter uma boa sintonia e garantir que todo mundo consiga se manter firme", ressaltou Raquel Tupinambá.
Os momentos de lazer foram essenciais para aliviar a tensão e renovar a energia do grupo. Jogos, contação de histórias e danças foram incorporados à rotina dos manifestantes, garantindo que a ocupação fosse também um espaço de aprendizado e troca intergeracional. "Nós estamos aqui para lutar, mas também para ensinar nossas crianças, para mostrar a elas que resistimos com nossa cultura e nossa arte", destacou Luan Borari, da Aldeia Caranã.
Com mais de 20 dias de mobilização contra a Lei 10.820, a luta já começa a dar frutos. Agora, com a minuta de revogação encaminhada para a Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), indígenas, quilombolas e professores seguem atentos para garantir que a vitória se concretize. "Foi um longo caminho e com certeza ainda será. Devemos estar sempre atentos e agir coletivamente", reforçou Dadá Borari
A integração entre a arte e a luta política mostrou-se essencial para a manutenção do movimento ao longo dos mais de 20 dias de ocupação. "A gente luta de forma muito séria, mas não abre mão da cultura, da música, do cinema e das artes em todas as nossas atividades", afirmou Raphael Ribeiro, do Instituto Território das Artes.
Com a revogação da Lei 10.820/2024 garantida através de um termo de compromisso assinado pelo governo do Pará, os povos indígenas demonstraram mais uma vez que a resistência se faz com unidade, força política e também com cultura. Afinal, na Amazônia, a arte não é apenas expressão: é luta, é identidade e é futuro.
Como pontuou Auricélia Arapiun em fala, citando Che Guevara “é preciso endurecer, sem perder a ternura”, e em muitos momentos a arte foi o alimento para a ternura, a alegria, a descontração e a saúde do corpo e da mente dos guerreiros da resistência que, juntos, coletivamente, protagonizam esse momento.