No Pará há 166 territórios quilombolas, desses 95 com titulação reconhecida por órgãos formais, segundo os dados da Comissão Pró-Índio. De acordo com os dados do Censo de 2022, o estado reúne a quarta maior população quilombola do país: 135.033 pessoas. Da mesma forma, o estudo demonstrou ser o Pará, o estado com maior quantidade de Territórios Quilombolas (TQs) oficialmente delimitados e o 1º do País em quantidade de quilombolas vivendo dentro de Territórios Quilombolas.
A Secretaria de Estado de Educação (SEDUC/PA) publicou recentemente o edital para o Processo Seletivo Simplificado Quilombola (PSSQ), que visa formar um Cadastro Reserva para a contratação de professores do ensino regular, destinados ao atendimento da educação escolar quilombola. Apesar de ser um certame com sua base legal extensa, – que abrange normas desde a Lei Complementar nº 007/1991 até dispositivos recentes de 2023 e 2024, e inclui marcos como a Lei Federal nº 10.639/2003 e a Convenção nº 169 da OIT – esse robusto arcabouço contrasta fortemente com a realidade vivida nos territórios quilombolas no Pará.
Historicamente, os territórios quilombolas e as suas comunidades no estado, têm enfrentado dificuldades para garantir uma educação que dialogue com sua cultura e realidade. A falta de políticas específicas, a precariedade estrutural das escolas e a ausência de um currículo contextualizado fazem parte dessa realidade. Além disso, assim como os indígenas demonstraram em recente protesto, as populações quilombolas também frisam as disparidades do modelo educacional proposto por Rossieli e os desafios enfrentados desde de 2022 na luta por uma política educacional estadual que atenda as especificidades da educação quilombola no Pará.
Em entrevista ao Tapajós de Fato, Élida Monteiro, Coordenadora Estadual da Educação Quilombola na Malungu, conta da dificuldade em manter um diálogo direto com o Secretário de Educação do Estado do Pará.
“[...] do finalzinho de janeiro e início de fevereiro de 2023 a 27 de junho de 2023 nós tivemos nove audiências canceladas na hora da audiência pelo Rossieli”, pontua.
Contudo, seguindo o protagonismo das próprias comunidades, a Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará, a Malungu, tem atuado de forma incisiva para pressionar o estado a implementar um modelo de ensino adequado. Desde 2022, a organização busca interlocução com o governo estadual para garantir a efetivação de políticas educacionais condizentes com a realidade quilombola. No entanto, o diálogo tem sido marcado por promessas não cumpridas e entraves políticos.
“ [...] houve uma possibilidade no início de 2023 da Malungu criar uma coordenação formada por representante das regionais, das cinco regiões que a Malungu atua, e que essa coordenação fizesse parte de uma das coordenações dentro da Seduc, que representasse os quilombolas né, na construção das políticas para educação quilombola. [...] Só que em 2023, quando era proposto essa criação desse grupo, dessa integração à COPIR, uma coordenação de promoção de igualdade racial e educação quilombola mas que nunca teve participação de quilombolas - e aí a gente entende porque que vem uma maneira totalmente atravessada e não chega na ponta [as políticas educacionais] - e aí para nossa surpresa, o que seria o nosso contrato no início de fevereiro de 2023, chegou o Rossilei com uma equipe de 60 pessoas, com uma proposta eu posso dizer assim, surreal para o nosso estado né, para todo esse contexto, essa dimensão territorial e questões de estrutura, logística, especificidade de cada território, de cada regional”, relata Élida Monteiro.
Élida explica que para o Rossieli, com a sua proposta de uma educação neoliberal, “nós [os territórios quilombolas] estávamos todos numa única caixinha”, pois para ele o modelo educacional que fosse pensado para a região metropolitana também poderia ser desenvolvido nos territórios quilombolas, o que não se realiza quando se leva em consideração as especificidades de um estado como o estado do Pará.
“[...] ele não imaginava o quão desafiador seria atuar nessas regiões, né?. Como você implementa uma proposta de educação tecnológica, uma educação através de mídia, dentro de um território que simplesmente não tem energia, simplesmente não tem internet, que simplesmente não tem estrutura e não tem escola? e a gente começou um debate muito árduo”, relata a coordenadora.
Um arcabouço legal para uma política de inclusão
O edital do PSSQ está fundamentado em um complexo conjunto normativo, que parte de leis e decretos estaduais e federais que visam à promoção da igualdade racial e à valorização dos direitos dos povos tradicionais, como é possível perceber pelo edital que rege o certame.
Em tese, essa medida representa um avanço ao buscar a contratação de professores de origem quilombola para atuarem diretamente nas escolas localizadas em territórios quilombolas, possibilitando o diálogo com os saberes locais e o fortalecimento da identidade dos alunos.
Porém, essa extensa base legal também revela uma tentativa de encaixar a educação quilombola em um modelo burocrático que muitas vezes se distancia das necessidades reais dos territórios. As normas – que variam desde a Lei Complementar nº 077/2011 até a Lei Complementar nº 183/2024 – acabam se mostrando mais como obrigações formais do que como instrumentos efetivos de transformação.
Douglas Sena, coordenador regional da Malungu no Baixo Amazonas, faz sérias críticas ao Sistema Modular de Ensino (o SOME) e denuncia posturas que têm, ao longo dos anos, prejudicado significativamente o aprendizado dos alunos e a continuidade do ensino médio regular nos territórios quilombolas.
“[...] a gente não gostaria que o Sistema Organizacional Modular de Ensino continuasse [da forma que está], né, porque por exemplo, aqui em Óbidos pelo SOME tinha professores que chegavam terça-feira na comunidade dava aula terça, quarta e quinta, na sexta-feira dobrava de volta para Cidade. E aí ficava sempre muito a desejar né, e assim teve comunidades aqui em Óbidos que na rodada de um ano, foram três professores dar aula, então um sistema de ensino que era para durar 3 anos, teve gente que terminou aqui já na metade do 4º para o 5º ano de estudo do ensino médio né, isso também ocasionou um atraso no ensino-aprendizado das pessoas e isso desestimula né, então é uma série de coisas negativas nesse sentido”, relata Douglas.
Contudo, Douglas também reforça que o modelo proposto por Rossieli através do Centro de Mídias Educacionais do Estado do Pará (CEMEP), também não atende a realidade dos territórios quilombolas, pelo contrário, precariza ainda mais um sistema que já é bem precário.
“O governo do estado insistiu em algumas outras experiências não exitosas [...] que é Centro Educacional de Mídias né, que o professor tá dando aula lá em Belém ao vivo e na comunidade tem um tutor na sala de aula e os alunos com o notebook assistindo. Aqui na nossa região do Baixo Amazonas esse sistema funcionou na comunidade quilombola do Pacoval em Alenquer, e assim, toma de conta de uma estrutura de uma escola de nível Municipal e a escola não tem a estrutura. Então a escola já não tem a estrutura para suportar a demanda do Ensino Fundamental menor e maior e ainda vem mais o estado botando para cima da escola uma estrutura que não é dela, fica muito complicado. Sem falar que você tira uma grande porcentagem de mão de obra, que poderia ser aproveitada dentro da comunidade pois a gente tem muitos profissionais graduados, pós graduado, inclusive no Pacoval, com mestrado, que já poderia estar atuando mas que não tem tido oportunidade”, relata.
A vitória parcial do PSS Quilombola
Diante da pressão das comunidades e do histórico de mobilização por parte da representação da Malungu, foi conquistado um avanço significativo: a criação do PSS Quilombola, que prioriza a contratação de professores de origem quilombola para atuarem em seus territórios.
“[...] a partir de toda essa falta de atendimento, em 2024 a gente conseguiu através da Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos, através de um decreto, instituir a Câmara Técnica que é um grupo de trabalho que discute uma educação antirracista, com representatividade da Secretaria de Educação, da Secretaria de Igualdade Racial, do Sedenpa, que é o movimento negro do Pará, e da Malungu, que é o movimento quilombola [...] então lá a gente vai demandando questões pra Seduc e vamos construindo alguns processos e em uma reunião, na sétima reunião do ano de 2024 numa quinta-feira nós deliberamos que queríamos um PSS específico”, pontua Élida.
A medida, no entanto, não é vista como uma solução definitiva. As lideranças defendem um concurso público específico para garantir que esses profissionais tenham estabilidade e possam planejar a longo prazo um ensino de qualidade.
“Eu acho que isso é um ganho sim, como eu disse foi um pontapé inicial que a gente tem dado. Não é o que a gente quer, a gente quer concurso, a gente quer garantia de direito para nós, para atuar dentro dos nossos territórios e tá garantido através de legislação, que é o concurso. Contudo, eu compreendi, mesmo com todo anseio de alguém que tá aqui lutando muito, igual as outras lideranças quilombolas, eu compreendi que era importante a gente chutar essa bola e dar um pontapé inicial, construir algo que os nossos consigam minimamente se ver”, pontua Élida.
Para garantir a transparência do processo seletivo, foi criada uma comissão composta por representantes da Malungu e da Secretaria de Educação. Essa comissão tem a responsabilidade de validar as declarações de pertencimento quilombola apresentadas pelos candidatos, evitando fraudes e garantindo que as vagas sejam destinadas aos professores quilombolas.
Desafios persistentes e a desconexão entre norma e prática
Apesar desse avanço, a realidade da educação quilombola no Pará segue marcada pela precariedade. A falta de estrutura física nas escolas, a carência de materiais didáticos adequados e a ausência de formação continuada para professores são desafios que ainda precisam ser superados.
“O nosso primeiro encontro com o Rossieli foi após as manifestações dos indígenas e alguns quilombolas, de toda aquela situação de pressão que ele estava sofrendo. Ele entendeu que a melhor coisa era se reunir com o movimento, ouvindo o movimento, e tentar dialogar, contudo, 2024 foi um período difícil”, relata Élida emocionada ao lembrar dos desafios enfrentados.
As lideranças também denunciam o descaso do governo na implementação do Novo Ensino Médio Quilombola. Enquanto o Estado propagandeia a iniciativa como um grande avanço, nos territórios a realidade é outra. Muitas turmas ainda estão registradas no sistema como ensino modular, o que pode comprometer a contratação de professores do PSS Quilombola. A ausência de um levantamento preciso do número de alunos e professores quilombolas impede a formulação de políticas eficazes.
“[...] O estado não conseguiu provar para nós [representantes da coordenação da Malungu] quantos alunos quilombolas existem matriculados, eles não sabem dizer até hoje quantos alunos quilombolas o estado tem matriculados [no sistema]. Eles não tem quantitativo de professores, então por aí se vê que é algo muito superficial. Se vocês tiverem acesso a matriz curricular que eles criaram dentro da Seduc - como a gente ficava na pressão eles diziam que tinha, que já tinham construído todo o material para os quilombolas, como a gente ficava pressionando surgiu uma matriz curricular - é algo totalmente fora da caixinha para nós, não atende às especificidades, não atende os territórios”, pontua a coordenadora.
Essa situação demonstra que, enquanto as políticas públicas permanecem centralizadas e burocráticas, a realidade dos territórios exige soluções que respeitem as especificidades e potencializem os saberes ancestrais.
Entre o ideal e o real: a urgência de um compromisso transformador
O cenário da educação quilombola no Pará revela a tensão entre o ideal de uma educação que valorize a identidade quilombola e a realidade de um Estado que, mesmo com um arcabouço legal extenso, falha na execução das políticas públicas.
A educação escolar quilombola não é apenas uma questão de acesso ao ensino, mas de reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos povos quilombolas. As políticas educacionais do Estado, se não forem construídas em diálogo com as comunidades, correm o risco de perpetuar um modelo que exclui e marginaliza.
A coordenadora da Malungu reforça a precariedade encontrada pela organização em visita em muitos dos territórios. “[...] è adoecedor, a gente ter ido em muitos dos territórios, ouvido dos nossos quilombolas, visto de perto muitas situações né, no estado. A gente visitou um dos encontros de mulheres em Serrinha, e a gente viu de perto a situação né, da estrutura, questão de merenda escolar, questão de formação de turma. Fomos agora recentemente aí em Santarém também, visitamos um território em Santarém, vimos a precariedade da educação, sucateamento de transporte escolar dentro dos municípios, de atendimento mesmo também do estado”, enfatiza.
A luta pela educação quilombola no Baixo Amazonas é um reflexo da luta maior dos povos quilombolas por direitos e por reconhecimento. Mais do que medidas paliativas, é necessário um compromisso real do estado para garantir que a educação seja, de fato, um instrumento de emancipação e fortalecimento dessas comunidades.
Enquanto as entidades representativas, como a Malungu, lutam por um ensino que assegure continuidade, compromisso e valorização dos saberes locais, o governo insiste em medidas que muitas vezes acabam por reforçar a exclusão e a marginalização. Somente com um diálogo genuíno e com a participação ativa das comunidades, será possível transformar a educação em um instrumento de emancipação e de reconhecimento dos direitos dos povos quilombolas.