A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (SEMAS/PA) emitiu a autorização nº 5776/2025, válida até 12 de fevereiro de 2026, permitindo a realização de dragagem no Rio Tapajós. A medida, solicitada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT), busca facilitar a navegação de comboios de barcaças do agronegócio na Hidrovia do Tapajós.
No entanto, a decisão contraria não apenas a Recomendação nº 11/2024 do Ministério Público Federal (MPF), mas também uma decisão judicial que determinava a suspensão do processo até a realização de consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas e tradicionais afetadas.
Em despacho publicado na segunda-feira (10), em caráter de urgência, assinado pelo Procurador da República Vítor Vieira Alves, o Ministério Público Federal enfatizou a celeridade, por parte da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, quanto ao andamento do processo de licenciamento da obra, uma vez que: “Em consulta ao site da SEMAS/PA, verificou-se que a autorização foi concedida nos autos do Processo nº 2025/0000004190, cujo início se deu em 29.1.2025 e a emissão do documento autorizativo ocorreu em 12.2.2025, ou seja, 10 dias úteis após o pedido” (Trecho do despacho do MPF).
O Ministério Público Federal instaurou, em junho de 2024, um inquérito civil para investigar o projeto de dragagem da hidrovia, apontando a ausência de consulta aos povos indígenas da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns e da Floresta Nacional do Tapajós.
Da mesma forma, em setembro de 2024, o órgão expediu recomendação à SEMAS e ao DNIT para a suspensão do licenciamento ambiental, além de exigir a realização de estudos prévios de impacto ambiental (EIA/RIMA). Para o procurador Vítor Vieira Alves, a SEMAS ignorou essa recomendação e concedeu a autorização sem atender às exigências legais, agindo de forma unilateral e sem transparência.
A Justiça Federal, por meio da Ação Civil Pública nº 1014317-12.2024.4.01.3902, determinou que o governo estadual deveria adequar seus procedimentos de licenciamento ambiental para obras portuárias e hidrovias, incluindo estudos de impacto climático e social. Essa decisão foi ignorada pela SEMAS ao conceder a autorização.
Além disso, um parecer técnico do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) alertou para os riscos ecológicos significativos, incluindo a destruição do habitat de espécies aquáticas e impactos severos sobre as populações ribeirinhas que dependem do rio.
Nesse sentido, Brent Millikan, membro da secretaria executiva do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental, que é uma rede de organizações da sociedade civil brasileira, relembra que “as hidrovias do médio e baixo Tapajós fazem parte de algo maior, que é o corredor Logístico Tapajós-Xingu, que inclui a br-163 - que tá em processo de duplicação, e a proposta da Ferrogrão entre Sinop e Miritituba. E é importante lembrar disso porque o planejamento dos corredores logísticos é uma espécie de carro chefe da Política Nacional de Transporte, inclusive no Plano Nacional de Logística (PNL)”.
Projeto da Hidrovia Tapajós
O projeto da Hidrovia Tapajós, avança sem consulta prévia às populações indígenas e tradicionais, e com graves irregularidades no processo de licenciamento ambiental.
"O problema é que esse modelo de desenvolvimento não leva em conta os impactos cumulativos entre os diferentes modais de transporte nem alternativas mais sustentáveis", afirma Brent. Segundo ele, o processo de licenciamento ambiental foca apenas em trechos isolados da hidrovia, ignorando o impacto sistêmico da atividade.
Outro ponto crítico é a falta de consulta prévia, livre e informada, direito garantido pela Convenção 169 da OIT. "As hidrovias são planejadas para beneficiar grandes empresas do agronegócio, sem considerar os modos de vida dos ribeirinhos. O transporte fluvial sempre foi essencial para as populações da Amazônia, mas o modelo atual de hidrovia privatiza os rios”, pontua.
Governo Federal anuncia investimentos para expansão da infraestrutura hidroviária do Rio Tapajós, enquanto comunidades ribeirinhas não tem acesso a infraestrutura de seus pequenos portos
Os grandes projetos de hidrovias, muitas vezes são planejados sem considerar os impactos diretos sobre as comunidades ribeirinhas. Isso reflete uma lógica desenvolvimentista que prioriza o escoamento de commodities, como soja e milho, em detrimento das populações que dependem do rio para viver.
“O transporte fluvial é super importante, sempre foi e continua sendo. Mas uma coisa que a gente vê ausente do planejamento de hidrovias, é pensar nos ribeirinhos que moram na beira do rio. A gente teve agora visitando comunidades no Rio Madeira, entre Porto velho e Calama, e a gente viu que enquanto se tem essas embarcações enormes descendo o rio para transporte de soja, as comunidades ribeirinhas não contam com o mínimo de infraestrutura em seus portos, embora eles tenham um papel muito importante [...] sejam fundamental para abastecimento das áreas urbanas: a produção agrícola, agroflorestal, agroextrativista, importante para várias coisas das comunidades: transporte escolar, da saúde etc, falta uma política pública de apoio para infraestrutura de transportes para essas populações”, pontua Brent.
O Governo Federal, por meio do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), anunciou um investimento de R$ 4,8 bilhões para expandir a infraestrutura hidroviária do país. Entre as obras previstas estão dragagens no rio Tapajós e no rio São Francisco, bem como a manutenção da navegabilidade dos rios Madeira, Parnaíba e Paraguai.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também firmou parceria com a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) para estruturar Parcerias Público-Privadas (PPP) para as hidrovias dos rios Tapajós e Tocantins. Segundo o BNDES, o objetivo é aumentar em até dez vezes o volume movimentado de cargas, consolidando esses trechos como estratégicos para o escoamento da produção agrícola e mineral.
A falta de políticas públicas para garantir a infraestrutura básica dos portos comunitários e do transporte local é um reflexo da desigualdade.
Lideranças indígenas do Baixo Tapajós denunciaram por meio de redes sociais, e via MPF, que a dragagem já começou a ser realizada em alguns trechos, sem que tenham sido consultadas previamente.
Marcílio, vice-coordenador do Conselho Indígena Tupinambá (CITUPI), relata que as primeiras informações sobre a presença das dragas na altura da comunidade de Prainha, dentro da Floresta Nacional do Tapajós, chegaram através de postagens em grupos de mensagem e que no início os moradores locais achavam que eram dragas de garimpo. Ao investigar, constatou-se que não se tratava de uma draga de garimpo, mas sim de um equipamento mais complexo.
Vídeos enviados ao MPF mostram embarcações do tipo draga operando na enseada da comunidade de Prainha, dentro da Floresta Nacional do Tapajós.
A principal preocupação das comunidades é a degradação do ecossistema aquático, a contaminação da água e os impactos sobre a pesca artesanal, essencial para a subsistência local.
"A área de dragagem está muito próxima ao nosso território, o que impacta diretamente as barreiras naturais e os sítios arqueológicos. Em Santo Amaro, por exemplo, já vemos artefatos cerâmicos sendo levados pela água", alerta Marcílio.
Marcílio alerta também sobre irregularidades nos trabalhos do DNIT. “[...] Em uma visita a uma comunidade que tá dentro do território Tupinambá no ano passado [...] eu me deparei numa comunidade no Pau da Letra com uma estação telemétrica do DNIT. E aí eu fui até a liderança da comunidade, perguntei se eles estavam sabendo, eles disseram que não sabiam da estação. Eu fui até lá a estação, no local onde estava situado, estava à frente da casa no terreno de um comunitário lá do Pau da Letra, eu perguntei para ele quanto tempo que estava ali aquela estação telemétrica e aí ele me falou que pelo menos um mês já estava lá, e que o chefe lá da família era o monitor que passava as informações toda manhã e tarde para o Dnit a respeito da água, da medição lá. Eu questionei o ICMBio se eles estavam sabendo, a chefia do ICMBio disse que não sabia da instalação da estação lá na comunidade, porque tá dentro da Resex e eu achei muito estranho, mas que depois a chefia disse que havia uma solicitação do Dnit, mas que não tinha sido autorizado. Então tá todo irregular né, toda ação do Dnit tá irregular a respeito dessa instalação e de todo o processo da hidrovia Tapajós, e desse processo de dragagem”.
Marinha do Brasil reconhece riscos da dragagem e suspende concessão de licença
A Marinha do Brasil, por meio do Comando do 4º Distrito Naval, suspendeu o processo de concessão de autorizações, reconhecendo os riscos da dragagem.
A mesma demonstra preocupação em relação à eventual dragagem, especialmente devido à destinação dos sedimentos retirados, conhecidos como "bota-fora" - local onde são despejados os sedimentos retirados do rio. O principal receio é que essas áreas possam causar impactos ambientais e comprometer a segurança da navegação.
A preocupação da Marinha se justifica porque os sedimentos descartados podem modificar a dinâmica do rio, afetar a qualidade da água e comprometer os ecossistemas locais. Além disso, há o risco de que substâncias tóxicas ou poluentes presentes no leito do rio sejam remobilizadas durante a dragagem.
O posicionamento da Marinha reforça que não há como resolver um problema – a necessidade de melhoria na navegação – sem criar outro, como os impactos ambientais e sociais das áreas de bota-fora. O MPF, em seu despacho, dá destaque a esse ponto crítico e enfatiza “que a área de dragagem e sinalização passa por territórios como a Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns e Florestal Nacional (Flona) do Tapajós”.
Diante da autorização da SEMAS, organizações indígenas e comunitárias reforçaram sua oposição ao projeto.
Segundo o MPF, a SEMAS ainda não apresentou justificativas jurídicas para a dispensa do licenciamento ambiental regular e a exclusão dos povos indígenas do processo decisório. A Procuradoria da República em Santarém requisitou, com prazo de 48 horas, esclarecimentos sobre os fundamentos legais da autorização e a comprovação de anuência da Marinha do Brasil para a realização da dragagem.
A renitência do DNIT em cumprir as exigências legais também se torna evidente. O órgão demorou quase cinco meses para encaminhar os documentos do projeto ao MPF e, quando o fez, impôs restrições de acesso, dificultando a análise dos processos. Além disso, protocolou um novo pedido de dragagem em caráter emergencial, tentando driblar a exigência de estudo de impacto ambiental.
No despacho, o procurador determina a SEMAS/ PA que no prazo de 48 horas explique a base legal utilizada para conceder uma autorização em vez de um licenciamento ambiental para a dragagem do rio Tapajós, bem como, justifique por que essa autorização foi concedida como uma medida emergencial.
Além disso, a SEMAS/PA deve apresentar documentos que comprovem se a Marinha do Brasil aprovou a dragagem ou, caso contrário, esclarecer o motivo de essa aprovação não ter sido necessária e enviar ao MPF todos os processos em andamento na SEMAS que envolvam a Hidrovia do Tapajós, incluindo ações de dragagem e sinalização, com destaque para o processo em questão.
Da mesma forma, o DNIT deve demonstrar se houve aprovação da Marinha para a dragagem do rio Tapajós ou explicar porque essa aprovação não foi exigida. Além de encaminhar ao MPF cópia do processo referente a dragagem, incluindo o pedido feito à SEMAS para obtenção da Autorização nº 5776/2025.
A Marinha do Brasil cabe informar se a dragagem do rio Tapajós foi autorizada e, se sim, com base em qual justificativa. Caso a aprovação não tenha sido concedida, explicar quais ações serão tomadas para interromper a operação das dragas.
Para os povos da Amazônia, o Rio Tapajós não é apenas um corredor de escoamento de commodities agrícolas, como descrito no projeto da hidrovia, mas um território vivo, essencial para sua identidade cultural e sobrevivência. A luta contra a implementação da dragagem sem consulta e estudos técnicos adequados se torna mais um capítulo da resistência dos povos tradicionais contra os avanços predatórios do agronegócio e das grandes obras de infraestrutura na região.
*O Tapajós de Fato entrou em contato, por telefone, com o setor de licenciamento da SEMAS/PA, solicitando mais informaões e um posicionamento do órgão, mas até o fechamento desta reportagem não obteve retorno.