Nos últimos anos, a região Norte do Brasil tem sido palco de uma intensa expansão portuária, com destaque para o estado do Pará, que concentra a maioria das instalações privadas do país.
A região do Tapajós, tida como uma região estratégica pelas grandes empresas, se tornou um dos principais corredores logísticos para o escoamento da produção agrícola brasileira, especialmente soja, milho, fertilizantes e combustíveis. Itaituba, um município estratégico para o escoamento da produção do Centro-Oeste, concentra mais de 50% desses portos.
No entanto, o acelerado crescimento de instalações portuárias na região tem sido marcado por uma série de irregularidades no licenciamento ambiental e por violações de direitos humanos, afetando diretamente povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, como aponta o estudo Portos e Licenciamento Ambiental no Tapajós: Irregularidades e Violações de Direitos, idealizado pela Terra de Direitos com base em informações encontradas nos sites da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas), da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e das prefeituras municipais de Santarém, Itaituba e Rurópolis.
De acordo com dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), em 2023, havia 387 instalações portuárias privadas autorizadas ou registradas nos estados da região Norte, representando mais da metade do total no Brasil.
No Pará, especificamente, foram contabilizadas 210 instalações, das quais 204 estavam em operação.
A maioria das instalações portuárias construídas no estado do Pará estão centralizadas nas cidades de Barcarena, Itaituba e Santarém, e movimentam principalmente soja, milho, fertilizantes e combustíveis.
Entre Santarém, Itaituba e Rurópolis, municípios da região do Tapajós, foram identificados um total de 41 instalações portuárias públicas e privadas para transporte de mercadorias, segundo o estudo da Terra de Direitos. Desse total, 27 já estão operando, três estão em construção e 11 estão previstas.
Entre os projetos previstos, dois tiveram o licenciamento ambiental suspenso por determinação judicial após denúncias de irregularidades, como a ausência de consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas e quilombolas impactadas. Além disso, um porto teve suas atividades paralisadas após recomendação do Ministério Público Federal (MPF).
Essas instalações pertencem a megaempresas como ADM, Cargill, Bunge, LDC, Amaggi, Carmuru, Cianport e Hidrovias do Brasil, além de empresas de menor porte, como os grupos Bertuol, Master, ABI e Atem.
Crescimento acelerado e irregularidades
O estudo da Terra de Direitos enfatiza que “a instalação de empreendimentos portuários como Terminais de Uso Privado (TUP) e Estações de Transbordo de Cargas (ETC) está associada a toda uma cadeia de produção e de logística que viabiliza o transporte hidroviário”, na região. A maior parte da carga escoada pelos portos em Itaituba e Rurópolis se liga aos de Santarém e Barcarena, no Pará, e aos portos em Santana, no Amapá. De lá, a soja é embarcada para exportação com destino à Europa e Ásia, com destaque para a China”.
No entanto, a maioria dessas instalações foi construída sem seguir os procedimentos adequados de licenciamento ambiental, como a realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA), e sem a consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas.
Um dos exemplos mais emblemáticos das falhas no licenciamento e das violações de direitos humanos na região do Tapajós é o porto da Atem S.A. em Santarém, que se autodenomina uma empresa com "DNA 100% Amazônida", e que tem por missão desenvolver negócios sustentáveis, efetivos e confiáveis.
A empresa, que se apresenta como referência na distribuição de combustíveis na Amazônia, possui operações portuárias em Belém, Itaituba e Santarém, além de uma extensa rede de postos de combustível em vários estados brasileiros e uma rede de infraestrutura de armazenamento e distribuição de combustíveis, com mais de 300 postos distribuídos entre diversos estados das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul.
A empresa está presente em 11 estados do Brasil e atua no transporte de combustível tanto por terra quanto por via fluvial, com milhares de clientes ativos e capacidade de movimentação de mais de 9 bilhões de litros de combustíveis por ano.
No caso específico de Santarém, o porto tem o potencial de impactar sete comunidades quilombolas (Pérola do Maicá, Arapemã, Saracura, Bom Jardim, Maria Valentina, Murumuru e Tiningu), o Território Indígena Munduruku e Apiaká do Planalto Santareno, além de áreas de pesca tradicional.
“A gente mora pra cá [ao longo do Lago] pra mim ir de rabeta pra Santarém, é preciso eu escolher a hora que o vento não está forte porque eu tenho que passar naquelas balsas, naqueles portos e se eu for carregado com mercadorias eu não consigo passar [...] eu já estou enfrentando problemas para escoar a minha mercadoria”, relata José Augusto, quilombola, pescador e agricultor familiar que reside no Quilombo de Nova Vista do Ituqui.
No caso dos pescadores, o porto pode impactar negativamente mais de 140 comunidades, com uma população de 35 mil pessoas, inviabilizando suas condições de reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica. Isso inclui a perda dos modos de vida tradicionais, como a caça, a pesca, a medicina tradicional, além de fontes de alimentação e renda.
Violações de direitos humanos e ausência de consulta prévia
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2004, estabelece que povos indígenas e comunidades tradicionais devem ser consultados de forma prévia, livre e informada sobre empreendimentos que possam afetar seus territórios ou modos de vida. No entanto, nenhum dos 41 portos identificados na região do Tapajós, incluindo o da Atem, realizou esse processo de consulta.
O estudo da Terra de Direitos identificou oito protocolos de consulta prévia de diferentes povos diretamente afetados pelos portos, incluindo comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas. Esses protocolos estabelecem as regras para a realização da consulta, mas, na prática, as comunidades não têm sido consultadas.
O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), da qual o Brasil é signatário desde 1948, estabelece que "toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar". Contudo, segundo Jondison Rodrigues, Pesquisador independente, Pós-doutor em Desenvolvimento Regional e Geografia, os povos tradicionais da região de Santarém “vem sofrendo em um processo de condições de perda de reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, o que configura uma violação de direitos humanos”, devido a instalação dos empreendimentos portuários sem consulta prévia.
Um exemplo disso é o porto da empresa Rio Tapajós Logística (RTL), em Itaituba, cujo processo de licenciamento foi suspenso pela Justiça em 2022 devido à falta de consulta prévia ao povo Munduruku. Outro caso é o da Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps), que também teve o licenciamento suspenso em 2016 por não consultar as comunidades tradicionais do Lago do Maicá.
No caso específico do Porto da Atem S.A em Santarém, o Ministério Público Federal (MPF) moveu, em julho de 2024, uma Ação Civil Pública (nº 1010198-08.2024.4.01.3902) para que a Justiça Federal suspenda mais uma licença ambiental concedida pelo estado do Pará para o porto da empresa no Lago do Maicá.
Em 2020, a pedido do MPF e do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), a Justiça Federal no Pará já havia suspendido o licenciamento. No entanto, o estado do Pará e a empresa entraram com recursos contra a decisão no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília (DF), e a decisão foi suspensa pelo tribunal. Em 2022, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) emitiu a primeira licença de operação, e, em 2023, emitiu a segunda.
Fragilidades no licenciamento ambiental
O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo destinado a autorizar a construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades que utilizam recursos ambientais, sejam efetiva ou potencialmente poluidores e capazes de causar degradação ambiental.
O pesquisador Jondison Rodrigues alerta que, a falta de transparência nos processos de licenciamento e a ausência de fiscalização adequada têm permitido que empresas burlem as regras ambientais.
Em relação ao porto do grupo Atem, o licenciamento ambiental realizado pela SEMAS, assim como as licenças de operação portuária emitidas pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), não deveria ter sido iniciado ou emitido, pois não houve consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas.
O pesquisador pontua que ao “se analisar o licenciamento ambiental do grupo Atem em Santarém, verifica-se que ele foi marcado por irregularidades, como a omissão das atividades reais do empreendimento”. Nas licenças prévias e de instalação, emitidas simultaneamente em 21 de fevereiro de 2019, eram consideradas apenas cargas não perigosas. No entanto, em 4 de fevereiro de 2022, foi concedida uma Licença de Operação (LO) para um terminal de combustível. Em 26 de outubro de 2023, outra licença de operação foi emitida, permitindo que o porto do grupo Atem movimente soja e fertilizantes.
O processo de licenciamento ambiental para empreendimentos de cargas perigosas é mais demorado e rigoroso devido a necessidade de estudos e relatórios de impacto ambiental. No caso da Atem ao não informar o transporte de combustível no início do licenciamento “configura uma espécie de burlar o processo de licenciamento ambiental mais rigoroso”, declara Jondison.
Tabela: Portos do grupo Atem a Ano pedido Autorização, Concessão pedido Autorização Mudança de perfil de carga e Autorização de Mudança de perfil de carga
Portos da Atem cidades | Ano pedido Autorização ANTAQ | Concessão pedido Autorização ANTAQ | Mudança de perfil de carga na ANTAQ | Autorização de Mudança de perfil de carga na ANTAQ |
Itaituba | 2017 | 2018 | 2021 | 2022 |
Santarém | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 |
Belém | 2022 | 2023 | 2024 | - |
Abaetetuba | 2019 | 2021 | - | - |
Segundo a Resolução COEMA nº 117, de 2014, empreendimentos que envolvam atividades industriais, minerárias, agroflorestais e de infraestrutura são obrigados a realizar um Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) para obter a Licença Prévia, com a realização de audiências públicas para informar sobre o projeto e seus impactos ambientais.
Muitos portos instalados no Baixo Tocantins e Médio Tapajós para movimentar grãos e fertilizantes realizaram o EIA-RIMA, seguindo o processo legal. No entanto, o pesquisador afirma que o grupo Atem burlou esse processo, assim como o grupo Transportes Bertolini, que construiu um porto flutuante em Itaituba para movimentar grãos e fertilizantes, considerado mais barato e rápido de construir do que estações terrestres.
Impactos socioambientais e pressão imobiliária
A instalação desses portos tem gerado uma série de impactos socioambientais na região. Além da perda de territórios tradicionais e da degradação ambiental, há um aumento da pressão imobiliária e dos conflitos fundiários. Comunidades quilombolas, como a de Arapemã, já perderam mais da metade de seu território devido ao fenômeno das "terras caídas", causado pela erosão das margens dos rios.
[...] se fosse só o combustível, o porto de combustível, que é aterro - que fizeram aterramento para o subsolo - sem problema nenhum, mas depois que fizeram o porto das balsas, que veio até ali fora, eu creio que mais ou menos uns 400 metros da beira, ficou só aquele espaçozinho entre o porto de combustível e o porto das balsas. Então ali, se você passou, bem, se não passou, se alaga, entendeu”, enfatiza seu José Augusto, quilombola, morador da comunidade de Nova Vista do Ituqui.
Para entidades sociais e ambientais, a região conhecida como Planalto Santareno, onde estão localizadas cinco aldeias (Açaizal, Amparador, Ipaupixuna, São Francisco da Cavada e São Pedro do Palhão) e vários territórios quilombolas (Murumuru, Murumurutuba e Tiningu), sofrerá impactos negativos, como perda de espaços de pesca, afugentamento de espécies de peixes, aumento da violência urbana e do tráfico de drogas, além da piora na infraestrutura urbana já precária.
Outra questão levantada pelo pesquisador Jondison, é o aumento da migração rural em busca de empregos temporários, elevação do custo de vida e dificuldades para gerir economias baseadas no rio, na floresta e nos animais, seja para consumo, venda, troca ou turismo de base comunitária, que representam o Bem Viver e as relações sagradas desses povos com seus territórios.
Logo, de acordo com ele, o “empreendimento não pode ser considerado um projeto de baixo impacto ambiental”, pois as águas, o rio, os povos e comunidades tradicionais, bem como as múltiplas espécies de animais, não têm fronteiras. Além disso, ele relembra que a história dos megaprojetos de infraestrutura na Amazônia trouxe inúmeros impactos sociais, ambientais, culturais, demográficos e políticos, gerando genocídios, desigualdades sociais, concentração de terras, assassinatos de lideranças e desmatamento.
“A gente já está sofrendo entendeu, sofrendo as consequências desses portos aí [...] Quando não tinha nada nessa beirada, eu ia tranquilamente para Santarém e voltava. Eu tô com 15 anos vendendo na feira dos milagres [...] e agora eu não posso mais levar mais a minha fruta pra vender lá porque se eu for com a minha bajara muito carregada, eu não consigo passar”, conta o pescador José Augusto.
Da mesma forma, a expansão do agronegócio, impulsionada pela facilidade de escoamento de grãos, também tem pressionado as áreas de várzea, tradicionalmente utilizadas para a pesca e a agricultura familiar.
Em 2023, o Estado do Pará enquanto réu da ação que pede a anulação das licenças da Atem se manifestou afirmando que o empreendimento da Atem é de baixo impacto ambiental e que não reconhece a existência de povos indígenas na região de influência do porto.
Propostas para enfrentar as irregularidades
Para garantir que os empreendimentos portuários sigam as regras do licenciamento ambiental e que os direitos das comunidades tradicionais sejam respeitados, o estudo da Terra de Direitos propõe uma série de medidas, como a garantia da consulta prévia e o fortalecimento dos órgãos de fiscalização ambiental.
Além disso, recomenda-se que o Congresso Nacional não aprove o Projeto de Lei nº 2.159/2021, conhecido como "PL do Licenciamento Ambiental", que flexibiliza ainda mais o processo de licenciamento.
A região do Tapajós vive um momento crítico, em que o desenvolvimento econômico precisa ser equilibrado com a proteção ambiental e o respeito aos direitos humanos. A luta das comunidades tradicionais por seus territórios e modos de vida é, acima de tudo, uma luta pela preservação da Amazônia e de sua biodiversidade.
Acesse a plataforma on-line interativa Portos no Tapajós para mais informações e dados detalhados: [portos.terradedireitos.org.br](https://portos.terradedireitos.org.br).