Durante uma audiência pública realizada na noite da última segunda-feira (7), moradores da Vila da Barca, em Belém, uma das maiores comunidades sobre palafitas da América Latina, desafiaram o diretor de Operações da Cosanpa, Antonio Crisóstomo, a beber a água que sai das torneiras da comunidade. A resposta — ou a ausência dela — escancarou o abismo entre o discurso institucional e a realidade vivida por milhares de pessoas na periferia de Belém.
Crisóstomo havia afirmado que “bebe água da Cosanpa” e que a qualidade da água distribuída na Vila da Barca seguia padrões exigidos pela Anvisa e pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma). A declaração veio após uma moradora relatar que a água chega frequentemente amarelada, com gosto e odor fortes, e que a situação se agravou após o início das obras da Nova Doca — projeto do governo estadual em preparação para a COP 30, que será sediada em Belém em novembro de 2025.
Diante da negativa do diretor sobre qualquer relação entre as obras e o problema da água, dois moradores encheram uma garrafa PET com água da própria torneira e ofereceram a ele. Crisóstomo recusou. O gesto, embora simples, foi carregado de significado. O episódio revoltou a comunidade, que considera a atitude uma afronta à dignidade de quem vive sem saneamento básico em uma área historicamente marginalizada.
A audiência foi convocada após pressão de moradores e lideranças da comunidade contra a instalação de uma estação elevatória de esgoto em um terreno onde antes funcionava o antigo Cortume Americano, um prédio centenário parcialmente demolido sem consulta prévia à comunidade. Inicialmente, o governo admitiu que a obra não beneficiaria os moradores. Só após uma série de mobilizações, que incluiu o chamado da imprensa, do Ministério Público e de órgãos de defesa civil, o discurso mudou. “Foi só quando perceberam que a gente estava organizado que passaram a dizer que a área urbanizada da vila seria interligada à rede”, disse o historiador e morador da comunidade, Kelvyn Gomes.
Kelvyn tem sido uma das vozes atuantes na articulação da resistência comunitária. Em entrevista, ele detalhou a cronologia dos acontecimentos que levaram ao atual impasse e relembrou como o terreno em questão, equivalente a cerca de um quarto da área da vila, foi sendo desmembrado ao longo do tempo. Uma parte foi cedida à prefeitura por permuta e deu origem à primeira etapa do projeto habitacional da vila; outra permaneceu com construções antigas, incluindo o cortume; e a terceira, conhecida como “Campinho”, foi transformada em espaço de lazer pelos próprios moradores — inclusive sendo cenário de um clipe da cantora Anitta, gravado na comunidade.
Segundo Kelvyn, a área foi gradualmente ocupada pela empresa Arapari Navegação, proprietária do terreno, que passou a usá-lo como depósito de entulho e materiais da obra da Nova Doca. “Fecharam uma rua que dá acesso à comunidade, tentando interligar seus dois terrenos, e só voltaram atrás depois que a gente mobilizou tudo e denunciou que estavam obstruindo uma via pública”, contou.
A construção da estação elevatória, segundo o governo, visa bombear esgoto de bairros nobres da cidade até uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) no canal do Galo, em Bernardo Sayão. O problema, dizem os moradores, é que a Vila da Barca, que não tem nem coleta regular de esgoto, tampouco rede de água encanada segura, não seria contemplada. “É um caso escancarado de racismo ambiental”, denunciou Kelvyn.
Ele lembra que, mesmo com a construção de uma estação de tratamento de esgoto durante a primeira etapa do projeto habitacional, o equipamento funcionou por pouco tempo. “Faltava segurança, as bombas foram furtadas, a estação foi desativada e nunca mais retomaram. Há mais de uma década a gente não tem nenhum tipo de tratamento de esgoto por aqui”, afirmou.
A audiência de segunda-feira (07), foi resultado de uma primeira reunião entre lideranças da comunidade e representantes do governo, realizada na sede da Secretaria de Obras Públicas do Estado (Seop), no meio da semana anterior — em um horário que impediu a ampla participação da comunidade, majoritariamente composta por trabalhadores assalariados. Para garantir mais presença popular, as lideranças exigiram que a segunda reunião ocorresse no território da Vila, e ela foi realizada no teatro do Curro Velho, também localizado na rua Nelson Ribeiro.
Kelvyn, junto com Suane Barreirinhas e Inês Medeiros, liderou a mobilização para lotar a audiência. “Fizemos live, panfletagem, explicamos o que era racismo ambiental, o que significava aquela obra para a comunidade, e por que a gente precisava se posicionar”, explicou. O esforço resultou em uma audiência tensa, com a presença de representantes da Cosanpa, da Seop e da Secretaria Municipal de Habitação.
Ao longo da reunião, moradores denunciaram não apenas os problemas da água e do esgoto, mas também a instabilidade elétrica, a contaminação por maré alta nas tubulações antigas e a ausência de qualquer estudo de impacto ambiental da obra. Questionado sobre a ausência desses estudos, o governo não apresentou dados técnicos ou ambientais que justificassem a localização da obra. Apenas repetiu que “geograficamente, era a área mais viável para o bombeamento”.
Para Kelvyn, o governo estadual trata a Vila da Barca como um espaço descartável.
A resposta agora será jurídica. Karina Gomes, advogada e irmã de Kelvyn, articula uma ação civil pública com pedido de embargo da obra.
A próxima reunião com o governo deve ocorrer em até dois meses, para que a comunidade avalie o cumprimento das promessas feitas — entre elas, a recuperação da rede de esgoto da área urbanizada, vistorias nas estivas e possíveis melhorias no abastecimento de água. O secretário Gilmar Gilberto, presente na audiência, chegou a afirmar que, caso não cumprisse o que prometeu, ele mesmo pediria para sair do cargo.