O “geo”, como se tem chamado, é uma peça técnica elaborada sobre o perímetro de um imóvel e que há anos tem gerado dúvidas entre as famílias agricultoras, nos assentamentos e em pequenas propriedades. Prazos para elaboração do geo, custos, obrigações e utilidades desse instrumento ainda são objeto de questionamentos para a agricultura familiar. Neste texto, coloca-se algumas explicações sobre o que é o “geo’ e para que ele tem servido.
O georreferenciamento é um levantamento topográfico moderno e sofisticado do imóvel rural que permite dar precisão aos seus limites. A elaboração do georreferenciamento envolve o levantamento de coordenadas cartesianas e geodésicas. Para traduzir esses termos, é melhor dizer que o geo é o resultado do mapeamento feito por técnico que marca os limites de uma área com pontos de GPS (sistema de posicionamento global).
O “geo” foi percebido como um instrumento importante para o combate à grilagem de terras, por identificar a partir de imagens de satélite a localização e a dimensão exata de um determinado imóvel, e, por isso, em 2001, a Lei nº 10.267 passou a prever a obrigatoriedade do geo para transações, como transferência de domínio, parcelamento e desmembramento da terra.
Como se daria essa obrigação de fazer o geo? Para quem não fizesse o geo, haveria alguma punição? A Lei nº 10.267 e seus regulamentos (Decreto nº 4.449 de 2002, o Decreto nº 7.620 de 2011 e o Decreto nº 9.311 de 2018) modificaram a Lei de Registros Público (Lei nº 6.015 de 1973) para que os Cartórios de Registro de Imóveis só permitissem abertura de matrícula e outros determinados registros sobre um imóvel mediante apresentação de certificação do georreferenciamento, com Anotação de Responsabilidade Técnica - ART e memorial descritivo, seguindo o Manual Técnico de Georreferenciamento de Imóveis Rurais do Incra.
Essa certificação é feita exclusivamente pelo Incra e obtida a partir do Sistema de Gestão Fundiária - SIGEF. A obrigatoriedade foi estabelecida em prazos organizados em escada. Quanto menor a área, maior o prazo para elaboração da certificação do geo. O último prazo encerra dia 20 de novembro de 2025 e se aplica a áreas menores de 25 hectares. Para áreas entre 25 e 100 hectares, como são a maioria das áreas da agricultura familiar do Norte do país, o prazo encerrou em 2023.
Como tem sido elaborado o georreferenciamento para a agricultura familiar?
A elaboração do Geo é gratuita e, como visto, só pode ser feita por profissionais habilitados. Ocorre que para as famílias em pequenas propriedades privadas (menos de 04 módulos fiscais, que nos municípios da Amazônia chegam a 300 hectares) o trabalho do profissional agrimensor tem sido pago pelas famílias quando não são beneficiadas por iniciativas de assistência técnica. O pagamento não é uma opção viável para todas as famílias e só ocorre quando há venda da terra com registro de cartório, outra raridade para a agricultura familiar.
A informação de que a agricultura familiar tem menos condições de fazer o geo e de fazer o registro em cartório é importante para afirmarmos que o georreferenciamento acaba servindo para legitimar grilagens. Vejamos que um proprietário, com grande capital, pode adquirir terra (posse) por contratos de compra e venda, como contratos de gaveta, e solicitar a regularização fundiária de uma área sem que nela apareça qualquer dado fundiário de sobreposição com agricultores familiares e assim conseguir gerar matrícula e geo sobre a área grilada. Além de obter em seu nome um Cadastro Ambiental Rural do mesmo imóvel.
Aliás, CAR e Geo não são a mesma coisa. O Cadastro Ambiental Rural deve apresentar as chamadas feições, de reserva legal, área de preservação permanente e área de uso consolidado do imóvel. O CAR está no sistema das organizações estaduais de meio ambiente e do Serviço Florestal Brasileiro, enquanto o geo é de gestão do Incra. Importante destacar que nem o CAR, nem a certificação do Geo são documentos comprobatórios de posse, muito menos de propriedade.
Para as famílias assentadas, a elaboração do Geo é de responsabilidade do Incra. Nos assentamentos convencionais, o geo é feito parcela por parcela, de modo individualizado, como já ocorreu em parte do PA Ituqui em Santarém, no Pará. Para os assentamentos coletivos, como os Projetos de Assentamento Agroextrativistas - PAEs, o georreferenciamento é coletivo. Para quê os assentamentos precisam de geo? Os assentamentos antes de receberem o título definitivo ou a concessão de direito real de uso, que deverão ser levados a registro, precisam do georreferenciamento, como prevê o Decreto nº 9.311/2018. A consolidação dos assentamentos já previa o levantamento topográfico desde a edição da Norma de Execução nº 09 de 2001 do Incra.
Passados anos de previsão da obrigatoriedade do Georreferenciamento, muitas desinformações foram espalhadas e um mercado de empresas de agrimensura e regularização de terras se mobilizou com base em informações falsas. Não são poucos os casos de agricultores que pagaram pelo geo em seus lotes de assentamento, e em pequenas propriedades para acessar políticas públicas. O georreferenciamento é interessante para a formação de documentos sobre a terras, mas só é obrigatório por lei para transações registradas em cartório. O geo não chega a ser obrigatório nem mesmo para hipoteca. O acesso a crédito também não é restrito a quem possui o geo.
O georreferenciamento e o reflexo das desigualdades no campo
Ainda observaremos nos próximos anos como será a implementação efetiva do georreferenciamento, mas já sabemos, por alguns fatores, que o setor de agronegócio vai se adaptar a esse instrumento de alguma forma, tal como tem se apropriado do Cadastro Ambiental Rural. Entidades ligadas ao agronegócio mobilizaram após a edição da IN nº 02/2014 do Ministério do Meio Ambiente, o alargamento do prazo do CAR a tempo de registrarem suas propriedades independente da situação possessória real, e anos depois vimos a plataforma do CAR tomada de cadastros sobrepostos.
O agronegócio levou a questão da obrigatoriedade do geo ao STJ - Superior Tribunal de Justiça em 2019 a partir de um caso de conflito no Mato Grosso. A decisão do STJ (Acórdão no Resp. 1646179) tratou do caso de conflito possessório reconhecendo a não obrigatoriedade da apresentação de geo para comprovação de posse. A Confederação Nacional da Agricultura ingressou com a ADI 4866 no Supremo Tribunal Federal - STF argumentando a violação do direito de propriedade pela Lei nº 10.267 que instituiu a obrigatoriedade do georreferenciamento. Nesta ação, o Supremo entendeu pela constitucionalidade da Lei e seu papel relevante para organização da malha fundiária brasileira.
O agronegócio que se pinta de verde, de sustentável, se rende facilmente aos processos burocráticos de registro de imóveis e a políticas permissivas à legitimação da grilagem sobre os quais possuirá grande vantagem baseada no domínio econômico comparado à agricultura familiar. Uma propriedade com geo, matrícula em cartório e CAR poderá ser constituída em cima violências, expulsões e desmatamento e ainda obterá maior valor de mercado.
A reivindicação de gratuidade da assistência técnica e da celeridade para elaboração de georreferenciamento para as áreas da agricultura familiar devem ser acompanhadas pelo atendimento das mesmas lutas históricas dos movimentos do campo. Com o georreferenciamento pronto, o título definitivo pode sair antes de terem sido implementadas políticas de habitação e educação do campo. E no caso dos assentamentos coletivos há uma tendência de que os georreferenciamentos sejam iguais a ilhas de reforma agrária que reconhecem às comunidades tradicionais apenas pedaços de terra onde não há sobreposição.
*As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as do Tapajós de Fato. Nosso objetivo é estimular a participação da população a enxergar a comunicação como ferramenta de luta.