600 entidades cobram marco legal para reconhecimento de territórios de comunidades tradicionais no Brasil

O Governo Federal prometeu criar um novo marco legal até a COP 30, mas entidades alertam que o processo político de construção não está avançando com a urgência necessária e o prazo corre risco de não ser cumprido.

07/05/2025 às 09h47 Atualizada em 07/05/2025 às 10h01
Por: Tapajós de Fato Fonte: Tapajós de Fato
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Foto: Pedro Martins, 2013
Foto: Pedro Martins, 2013

 Em Carta protocolada na quinta-feira (29), cerca de 600 entidades, organizadas em mobilização nacional, pedem urgência na criação de um novo marco legal para reconhecimento de territórios de comunidades tradicionais no Brasil. No ano da COP 30, o Governo federal deu esperanças de que uma normativa sobre o tema seria publicada até novembro. No entanto, as entidades destacam que, que apesar das construções que vêm sendo feitas há décadas, até o momento não há avanços efetivos na regulamentação para proteção desses territórios. 

 A Carta é direcionada à ministra Marina Silva, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, e ao ministro Paulo Teixeira, do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. 

 ::: Leia a carta 

 A importância de novo marco legal para comunidades tradicionais

 Embora povos e comunidades tradicionais tenham seus direitos territoriais reconhecidos em dispositivos da Constituição Federal de 1988, como o artigo 215, e em marcos internacionais como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os diversos grupos que se reconhecem como comunidades tradicionais requerem uma legislação específica que estabeleça procedimentos de reconhecimento da ocupação tradicional de terras. 

 “Sem uma normativa clara e aplicável, milhares de comunidades como quebradeiras de coco babaçu, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, pantaneiros, entre outros, seguem invisibilizadas diante do Estado e vulneráveis a processos de grilagem, desmatamento e conflitos fundiários”, afirmam as entidades que assinam a carta. 

 A principal demanda apresentada pelos movimentos sociais é por um marco legal que consiga superar desafios jurídicos vividos cotidianamente por essas comunidades tradicionais. A Assessora Jurídica do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Renata Cordeiro, explica quais desafios são esses: “Nossa experiência é que quando diante de uma reivindicação por titulação de território tradicional,  o Estado tem respondido em resumo que não há previsão legal para garantir territórios tradicionais, a propriedade privada está estabelecida e o território precisa conviver com ela e apesar dela”. 

 Renata Cordeiro destaca ainda que o reconhecimento territorial não avança sem acesso às informações sobre as terras públicas ou privadas, nem sem ações de discriminação de terras públicas e análises de cadeia dominial que gerem possíveis anulações administrativas de matrículas sobre imóveis rurais. Segundo Renata, “não há órgão com a competência para processar a  demanda territorial de povos tradicionais”. Uma política específica de regularização fundiária também permitiria realizar desapropriações, desintrusões e reintegrações em favor de comunidades tradicionais.

 Para Samuel Caetano, Geraizeiro e Presidente do CNPCT, o marco legal representaria um “reconhecimento da importância sociocultural dos povos e comunidades tradicionais e sua contribuição para a conservação ambiental. Um regramento jurídico que ainda não existe, irá fortalecer as diversas resistências dos povos e comunidades tradicionais Brasil afora e adentro”. 

 Diante dos constantes conflitos com fazendeiros, grileiros, empresas e o próprio Estado, as comunidades tradicionais sem reconhecimento territorial estão ainda mais vulneráveis à violência. Os modelos atualmente existentes para a concessão de terras a essas comunidades tradicionais - como os projetos de assentamentos agroextrativistas - não contemplam a diversidade de territorialidades presente em todo o país.

 “Esse decreto será um amparo para frear muitas violências que mutilam corpos e ceifam vidas que lutam pela terra e territórios no país, como: Binho, mãe Bernadete, Dorothy, Chico, Ronilson, Eloy e muitos outros companheiros e companheiras que foram abatidos por um sistema que grila terra através da violência em uma correlação de forças extremamente desigual. Ter esse decreto representa uma conquista para os povos e comunidades tradicionais que são a resposta para a crise civilizatória que está em curso”, aponta Samuel

 Conflitos no campo e a luta por reparação

 Desde 2024, o Governo federal, por meio dos Ministérios do Desenvolvimento Agrário e do e do Meio Ambiente, vem realizando atividades junto ao Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) para elaboração da minuta do Marco Legal de Povos e Comunidades Tradicionais. No entanto, a partir de 2025, os trabalhos foram sendo paralisados e as lideranças comunitárias identificaram um risco de o marco legal não ser publicado até novembro, conforme prazo previsto.  

 No ano em que o Brasil sedia a COP 30, a Carta chama atenção da Ministra Marina Silva e do Ministro Paulo Teixeira para a continuidade dos conflitos no campo e ausência de medidas eficazes para a resolução do avanço do desmatamento sobre os territórios de comunidades tradicionais - um dos principais vetores de emissão de gases do efeito estufa no país. 

 André Sacramento, coordenador da Associação de Advogados e Advogadas de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), ressalta que o Cerrado, uma das áreas mais devastadas pelo desmatamento, é palco constante de grilagem. “Os próprios Estados criam limites para o reconhecimento ao criar instrumentos de legitimação da grilagem de terras. O uso da violência armada e o alinhamento das ações de segurança pública, especialmente no nível local, aos interesses de grandes proprietários também põem em risco a permanência das comunidades em seus territórios”

 Ele também argumenta que há desafios jurídicos a serem superados com a criação e aprovação de um novo marco legal para povos e comunidades tradicionais. “A sobreposição dos territórios tradicionais a reivindicações particulares de propriedade - seja através de títulos registrados em cartório, seja através de cadastros digitais como o CAR - e a violência que normalmente acompanha essas reivindicações. Os efeitos dessas reivindicações de particulares são potencializados pela insuficiência de instrumentos de estado para efetivar a segurança das comunidades em seus territórios - políticas de reconhecimento e titulação limitadas, e com execução a cargo de órgãos e autarquias pouco estruturadas para este fim”. 

 Em entrevista ao Tapajós de Fato, a Educadora Popular da FASE, Julianna Malerba, reforça que é urgente a ampliação do marco regulatório de direitos territoriais  como um dos compromissos do atual governo. A aprovação de um novo marco representaria, de acordo com Julianna, uma estratégia essencial de proteção aos territórios e comunidades tradicionais. “Também é uma ação estratégica de combate à grilagem e à violência no campo, já que é sobre terras públicas e devolutas que se concentra a maior parte das terras ocupadas historicamente por esses povos e comunidades tradicionais".

Entre os signatários da Carta Aberta, constam movimentos sociais, como da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP), Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Movimento Sem Terra (MST), a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).

Também assinam organizações da sociedade civil, como a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas  e Povos Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (CONFREM), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS); universidades e núcleos pesquisa, como o Programa de Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Comunidades Tradicionais da Universidade de Brasília (MESPT/UNB), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal do Pará  (UFPA); Programa de Ordenamento e Governança Territorial; o Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB); Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS);  International Rivers; Instituto EcoVida; Terra de Direitos, Rede Cerrado; a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE);  Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG); Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Rede de Agroecologia do Maranhão (RAMA) e Rede Maniva.

Quem são os povos e comunidades tradicionais? 

Povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados, que se reconhecem como tais e desenvolvem suas próprias formas de organização social. Ocupam e utilizam os territórios e recursos naturais com base em conhecimentos e práticas gerados pela tradição. 

O Decreto nº 6040 de 2007 reconhece diversos grupos, como: povos ciganos, pescadores(as) artesanais, ribeirinhos, extrativistas, caiçaras, povos de matriz africana, pantaneiros, quebradeiras de coco babaçu, açorianos, faxinalenses, fundos e fechos de pasto, geraizeiros, ilhéus, isqueiros, morroquianos, pomeranos, povos de montanha, retireiros do araguaia, seringueiros, vazanteiros, andirobeiros, caatingueiros, jangadeiros, marisqueiras, pescadores artesanais de águas interiores, vacarianos, apanhadores(as) de flores sempre-vivas, veredeiros e groteiros-chapadeiros.

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